terça-feira, 30 de agosto de 2016

Ex-parceiro de Duda Mendonça e João Santana no marketing do PT, Antonio Risério diz que: “Foi uma espécie de autoimpeachment”

Guilherme Evelin - Epoca

Escritor Antonio Risério diz que Dilma cometeu estelionato eleitoral em 2014 – e, com isso, cavou sua sepultura



Antonio Risério (Foto: Folhapress)


O antropólogo e escritor baiano Antonio Risério trabalhou como redator das campanhas presidenciais do PT de 2002 a 2010, sob a batuta de seus conterrâneos Duda Mendonça e João Santana. Ele rompeu com o marketing. Com a mesma verve tropicalista com que escreveu o discurso de posse de Gilberto Gil no Ministério da Cultura em 2003, célebre pela pregação a favor de um “do-in antropológico” como a melhor política cultural para o Brasil, passou a definir os marqueteiros como uma mistura de “Goebbels, Pavlov e Odorico Paraguaçu”. 
É uma alusão impagável ao ministro da Propaganda do regime nazista, ao médico russo que descobriu os reflexos condicionados e ao político corrupto de O bem-­amado, de Dias Gomes. No recém-lançado Que você é esse? (Editora Record, 432 páginas, R$ 47,90), Risério transforma sua crítica ao marketing num romance. Um instigante amálgama de biografia geracional da juventude que cresceu nos anos 1960 com histórias ficcionais da formação do povo brasileiro, Que você é esse?, antes de ser lançado pela Record, foi recusado pela 34. Risério acusou sua antiga editora de censura política. De Cabo Verde, na África, onde finaliza pesquisas para novos livros, ele deu esta entrevista.

ÉPOCA – O senhor trabalhou muito tempo com marketing eleitoral. Passou a defini-lo como a “sistemática do estelionato”. O que causou essa reviravolta?
Antonio Risério – 
Não houve reviravolta, mas processo. Falo disso no romance, que tem também esse aspecto de implacável processo de autocrítica. Comecei com Lula, com a esquerda, sentindo-me em casa. Pensávamos usar aquele marketing, que vinha de Paulo Maluf e Carlos Menem [ex-presidente da Argentina], para fazer a esquerda chegar ao poder pelo voto. Naquela campanha de 2002, apesar de toda a sedução semiótica high-tech, o marketing funcionou no sentido da politização da população, com a discussão de temas fundamentais e o envio de recados diretos à sociedade. Lula ainda não tinha o que esconder. Depois, o PT caminhou para a direita e, como o PSDB já tinha feito antes com José Serra candidato a presidente, passamos definitivamente do marketing político para o marketing eleitoral. Progressiva, mas inflexivelmente. A prestidigitação de massas, em função da pura e simples permanência no poder, passou à frente de tudo. Em 2011, eu estava já próximo de Eduardo Campos [governador de Pernambuco, morto em 2014]. Logo adiante, passei a criticar o governo e o marketing petista, com sua violência simbólica e suas falcatruas histórico-políticas. Recrio o processo no romance. Aconteceu com várias pessoas, não só comigo. A manipulação e o estelionato tornaram-se a norma, a praxe.
ÉPOCA – Qual a diferença entre marketing político e eleitoral?
Risério – Há anos não temos marketing político no Brasil, mas marketing eleitoral – assim como não temos partidos políticos, mas partidos eleitorais. No velho marketing político, candidatos se dirigiam ao eleitorado dizendo diretamente o que pensavam. No marketing eleitoral, o que veio para o primeiro plano foram mandraquices milionárias para manter o povo em estado de dependência, de dominação anímica. Tudo virou truque. O candidato passou a ser submetido a um tratamento exacerbado de artificialização mercadológica. Photoshop do corpo e do espírito. E o foco deixou de ser o país. Não se tratava mais de lutar por um Brasil melhor. Ganhar eleições virou a grande e suprema virtude. Instaurou-se um quadro patológico, com o dinheiro reinando absoluto.
ÉPOCA – O senhor diz que está sempre procurando decifrar, em seu trabalho, alguma coisa do Brasil. Seu romance sai em meio a uma crise sem precedentes na história do país. Vê conexões entre seu livro e o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff?
Risério –
 Recrio no romance inúmeras coisas deste país móvel, múltiplo e sincrético, com todos os seus paradoxos, suas contradições e a surpresa de muitas de suas sínteses. Quando escrevi, a crise já se esboçava, mas ninguém tinha uma ideia precisa de sua dimensão no plano econômico e no terreno ético-político. Mas vamos ser claros: no campo moral e político, a crise apenas explodiu publicamente. A ética esteve sempre em crise nas últimas décadas – o que aconteceu foi que investigações recentes escancararam o velho jogo sujo das elites brasileiras, entre as quais incluo a elite petista no poder. Agora, não vejo conexão entre meu livro e o impeachment de Dilma. Ela não representa o segmento geracional de que trato. E acabou despencando num processo específico, que apenas denuncio: o de uma esquerda que renunciou a ser esquerda, ao chegar ao poder – e fez alianças com o que havia de pior na política e na burguesia brasileiras, a começar pelo PMDB de Temer e por um elenco de empresas hoje às voltas com a Justiça.

Políticos e marqueteiros escolheram a difamação. Pagam agora por esse crime contra a democracia”

 
ÉPOCA – O senhor relaciona a ruína do PT à manipulação  eleitoral na campanha presidencial de 2014.  Por quê?
Risério –
 O romance se compõe de dez textos – apenas um deles, o oitavo, se ocupa do marketing. E, dentro dele, o espaço dedicado à campanha de 2014 é mínimo. Mas, como falo de marketing, e não sobre economia, e fiz um romance, e não uma análise do país, fica a recriação das falsificações marqueteiras, a relação entre a bandidagem dos políticos e a bandidagem do marketing, em mais de uma década. Mas acho mesmo que a indignação nacional veio com tudo quando a sociedade percebeu que a dupla Dilma-Temer tinha dito uma coisa na campanha – e, depois de eleita, principiou a fazer o oposto do que propagandeou. Com isso, Dilma jogou no lixo os votos que recebeu. Foi uma espécie de autoimpeachment. Tudo decorreu do desejo insano de se perpetuar no poder, com tudo o que isso implica – financeiramente, inclusive. Desejo de alcançar ou de eternizar fontes de poder, prestígio e dinheiro. Como se a chamada alternância democrática de poder fosse um crime hediondo. Para se manter no poder, valia tudo. Mascarar e asfixiar a realidade, destruir sem escrúpulos a reputação alheia – como fizeram com Marina Silva, que também foi vítima de ataques baixos da campanha de Aécio Neves –, mentir com todos os brilhos e requintes da mais alta tecnologia. Enfim, políticos e marqueteiros escolheram o caminho da indignidade e da difamação, apostando na falta de memória e na ignorância popular, submetendo uma população vulnerável ao mais tremendo e inescrupuloso bombardeio tecno-simbólico de toda a história política nacional. Pagam agora por esse crime contra a democracia.
ÉPOCA – O senhor trabalhou com João Santana. O que achou da prisão dele?
Risério –
 O que posso dizer é que finalmente uma coisa como a Operação Lava Jato aconteceu no Brasil. A Constituição de 1988 trouxe uma prefiguração disso, ao promover um Judiciário independente. No mensalão, a ofensiva foi frustrada. Eu mesmo fiquei em dúvida sobre muitas coisas ali. E topei seguir apoiando Lula e o PT. Com a Lava Jato, as máscaras estão todas caindo. E isso tem de ser levado até o fim. Ao naufrágio de todo um sistema político apodrecido, do qual o marketing faz parte, que nos agride e nos humilha com sua simples sobrevivência. E não sou pessimista. A sociedade brasileira vai sair disso melhor do que entrou.
ÉPOCA – O que espera que aconteça com o marketing eleitoral no Brasil depois da Lava Jato e da proibição ao financiamento empresarial às campanhas políticas?
Risério –
 O marketing é secundário. O que importa pensar é o que vai acontecer  com o sistema político brasileiro em sua totalidade, arrastando o marketing eleitoral consigo. No início, falávamos apenas de crise representacional e da perspectiva da falência do partidocratismo. Era uma coisa que estava se manifestando nos mais diversos pontos do planeta, sintetizada na fórmula “não nos representam”. O sistema político brasileiro também foi seriamente atingido por esse questionamento mundial. Mas, aqui, a crítica ao partidocratismo e ao jogo dos políticos profissionais quase foi esquecida, quando a ela se sobrepôs a denúncia pública de todo um reino de trapaças e trapaceiros, destruindo patrimônios da nação e desviando dinheiro público, que deveria estar sendo aplicado em educação, saúde etc. Quando a Lava Jato começou a iluminar o buraco negro, nosso atual sistema político também começou a se desintegrar em seu conjunto. Fernando Henrique e Lula têm imensa culpa no cartório: eles jogaram no lixo a oportunidade histórica que tiveram de reinventar ou reconstruir a política brasileira. Nenhum dos dois quis fazer isso. Ou, se quis, não fez. O PT até aprofundou a podridão do alto mundo da política nacional. E agora seremos obrigados a tentar realizar a tarefa que Fernando Henrique e Lula não cumpriram. Tentar reinventar a política.