"A lógica da infidelidade", editorial do Estadão
O noticiário político dos últimos dias dá conta da encrenca cada vez maior em que
o apetite insaciável da "base aliada" enreda um governo que, teoricamente,
disporia de um número muito maior do que o necessário de senadores e deputados
para apoiar suas iniciativas no Congresso Nacional.
Cada vez mais pressionada
pela circunstância de ser este um ano eleitoral e pelo fato de o lulopetismo
entender que sua condição de dono exclusivo da verdade e da virtude justifica
qualquer meio para se manter no poder, Dilma Rousseff vai fazer o que seu chefe
e sua turma acham que deve ser feito: escancarar as portas da administração
pública - via reforma ministerial - para "aliados" que, em contrapartida,
garantirão à candidata à reeleição, ou seja, ao PT no poder, cerca de metade do
tempo no horário da propaganda eleitoral dita gratuita no pleito de outubro.
Nada a ver com fidelidade parlamentar ao governo. Esta é apenas moeda de troca.
Trata-se do mais puro, simples e descarado toma lá dá cá.
A necessidade de conquistar aliados para garantir apoio à execução de um
programa de governo é inerente ao sistema democrático. O chamado
presidencialismo de coalizão, contudo, desvirtua o fundamento democrático da
decisão majoritária transformando-o em mero instrumento para os governantes de
turno sustentarem seu projeto de poder. Não se trata, é claro, de uma invenção
dos petistas. Esse presidencialismo de coalizão, feito sob medida para garantir
o patrimonialismo que historicamente promove a promiscuidade entre o público e o
privado, não é nem mesmo um modelo exclusivamente brasileiro.
O PT de Lula apenas aperfeiçoou o modelo para proveito próprio. Depois de
passar 20 anos invectivando contra "tudo isso que está aí" e prometendo reformar
da cabeça aos pés o sistema político brasileiro para acabar com as injustiças
sociais que ele provoca, o metalúrgico de Garanhuns chegou finalmente ao poder e
aderiu sem nenhum constrangimento ao que "está aí". E é inegável que obrou
politicamente com competência, garantindo pelo menos mais duas eleições
presidenciais, sendo a última a de um autêntico "poste".
Mudar a política, então, para quê? Parte do PT e sempre que necessário o
próprio Lula continuam falando sobre a óbvia necessidade de reformas,
especialmente aquelas que de algum modo ajudem a consolidar sua hegemonia no
cenário político. Mas quase tudo o que mudou na política brasileira na última
década foi para pior, como bem demonstrou a insatisfação difusa da juventude
brasileira que saiu em massa às ruas no ano passado para protestar, em última
análise, "contra tudo isso que está aí".
A resposta de Dilma Rousseff à insatisfação crescente na sociedade brasileira
contra os políticos em geral e a ineficiência do poder público em particular é
inflar o governo. Depois de ter chegado a inéditos 39 Ministérios que fazem a
festa da companheirada, agora vai bater novo recorde, aumentando para 10 o
número de legendas partidárias no primeiro escalão - uma a mais do que no
governo de seu antecessor.
Não é uma engenharia política fácil. Tem tudo a ver com a metáfora do ter que
quebrar os ovos para fazer uma omelete. Mas Dilma não tem o direito de se
queixar, porque essa é a regra do jogo com o qual está comprometida. Não pode
nem mesmo reclamar da "infidelidade" de seus "aliados" no Parlamento, porque
sabe muito bem que parcerias construídas sobre os alicerces frágeis e cediços do
fisiologismo rompem-se facilmente ao sabor dos ventos das vantagens pessoais e
das marés dos interesses eleitorais.
Não há que falar, portanto, em crise na "base aliada" por causa das
dificuldades de Dilma Rousseff diante da chantagem pré-eleitoral dos
"companheiros", inclusive do próprio PT. Essa é apenas a lógica do toma lá dá cá
que Lula se recusou a combater (ao contrário, preferiu estimular em benefício
próprio) quando, no auge do poder, tinha tudo nas mãos para fazê-lo.
Se agora o governo melhora ou piora? Essa preocupação nem passa pela cabeça
da tigrada