segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

J.R. Guzzo: O Brasil ‘civilizado’ do STF

 O Supremo prendeu um cacique xavante e colocou em liberdade o ex-governador Sérgio Cabral, condenado a 300 anos por crimes de corrupção


O Supremo soltou Sérgio Cabral e prendeu um cacique xavante
O Supremo soltou Sérgio Cabral e prendeu um cacique xavante | Foto: Divulgação/CNJ


Num país em que o mundo político, as elites pensantes e as entidades da “sociedade civil” acham perfeitamente normal, e até elogiam, que o Supremo Tribunal Federal prenda um cacique xavante e coloque em liberdade o ex-governador Sérgio Cabral, a conclusão mais simples é: está valendo realmente tudo. O cacique não cometeu delito nenhum, a não ser um desses “atos antidemocráticos” que servem para colocar na cadeia, hoje em dia, qualquer cidadão que entre na lista negra dos ministros do STF. O ex-governador está condenado a 300 anos por crimes de corrupção, provados e confessos. O primeiro não tem direito, como acontece com tantos outros brasileiros, ao processo legal. O segundo tem direito a desfrutar os mais extremos privilégios que a lei concede a criminosos cinco estrelas. O cacique, é claro, é de “direita”. O magnata que a Justiça condenou como ladrão é de “esquerda”. Fica tudo explicado, então: prende um e solta o outro. É desse jeito que funciona a democracia no Brasil no final do ano de 2022.

Numa situação assim, é natural que não tenha levantado o mais remoto sinal de protesto o anúncio, por parte do ministro Alexandre de Moraes, de que o sistema STF-TSE pode extinguir o PL. Sim, extinguir o PL e, possivelmente, os mandatos dos seus deputados e senadores — qual é o problema? É apenas o maior partido da Câmara dos Deputados, só isso; acaba de eleger, nessas eleições que o STF considera impecáveis, 99 deputados. E o que o PL fez de errado para merecer a ameaça de extinção? Entrou com uma representação na justiça eleitoral para que fossem apuradas possíveis falhas em milhares de urnas usadas na eleição. Mas não é justamente para isso que existe a Justiça Eleitoral — para investigar queixas como as que foram feitas pelo PL? Deveria ser, pelo que está escrito na lei, mas não é. Esse TSE que está aí, claramente, não admite nenhuma queixa quanto à sua perfeição; reclamar é crime.

O PL, como se sabe, foi multado em R$ 23 milhões, e teve todas as suas contas bancárias bloqueadas, por ter apresentado a reclamação. O TSE não investigou absolutamente nada. Apenas decretou a multa, horas depois da entrada do pedido, sem observar processo legal algum. É uma decisão demente — e não importa, aí, se o PL está certo ou está errado em suas pretensões. A lei, obviamente, não exige que ninguém esteja com a razão para entrar com um processo na Justiça. As alegações de quem reclama alguma coisa são examinadas; se forem julgadas procedentes o autor ganha a causa, se forem julgadas improcedentes ele perde. É isso, e só isso — mas não para o TSE. Lá você é punido por exercer o seu direito de reclamar à Justiça. O ministro Moraes justificou a multa dizendo que o PL teria feito “litigância de má-fé”. É um disparate. Essa má-fé teria de ser provada, dentro dos procedimentos previstos em lei — e não foi provada má-fé nenhuma, mesmo porque não houve procedimento nenhum.

Todo mundo sabe, naturalmente, qual é o crime pelo qual o PL foi punido – trata-se do partido do presidente Jair Bolsonaro, que o STF escolheu como o seu maior inimigo e ao qual faz oposição diária e sistemática. Se multaram e bloquearam as contas — inclusive as de recursos próprios, que não têm nada a ver com o dinheiro público dos “fundos” partidário e eleitoral — e ninguém viu nada de errado, por que não dar o passo seguinte e extinguir o PL logo de uma vez? É a maneira mais cômoda de se livrar, numa tacada só, dos 99 deputados “do Bolsonaro”; funciona com mais eficácia, pensando bem, do que qualquer multa. Talvez eles possam criar alguma dificuldade mais adiante — não seria melhor resolver isso já? Uma coisa é certa: se fecharem o PL, vão dizer que é para salvar a democracia. O Brasil civilizado, moderno e lúcido vai aplaudir de pé.

Publicado originalmente na Gazeta do Povo

Gazeta do Povo