sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

'Um Natal na cozinha, e não nas redes sociais', por Ana Pauka Henkel

 

Foto: Shutterstock


Há uma razão pela qual Madre Teresa disse que a maneira de mudar o mundo é ir para casa e amar sua família


Meu pai. Personagem constante em artigos e entrevistas para aqueles que me acompanham há algum tempo. Creio que meu pai seja a pessoa mais acessada em minha assembleia de vozes. São tantos ensinamentos que, quando penso em escrever um livro sobre o meu mestre na vida, fica difícil saber por onde começar. Nesta época do ano, lembramos sempre com mais saudade daqueles que já nos deixaram. Mas tempos difíceis, como agora, colocam meus pensamentos em nossas conversas… O que ele estaria dizendo? Quais seriam os pontos de reflexão que meu velho traria para as nossas conversas na mesa da cozinha ao amanhecer, no meio da madrugada ou no meio da tarde depois de passar um café fresco para tomar comendo queijo?

Falaríamos muito sobre a família, mas, certamente, falaríamos de política. Meu pai não se privava das frustações e das esperanças que a política traz, fazia questão de discuti-las na mesa com todos nós. É claro que estaríamos falando de nomes, mas, antes de qualquer coisa, estaríamos falando de ideias, projetos e ações. Professor e diretor pedagógico, meu pai era um homem apaixonado pelo que fazia, por seus alunos e pela vida. Mas ele também era pragmático, racional e profundamente ligado à sua própria assembleia de vozes. Ah… são tantos casos e lições com o meu pai…

Ana Paula Henkel e o pai | Foto: Arquivo pessoal

Nos anos 1980, depois de se dedicar durante décadas em salas de aula como professor de matemática, ele passou a comandar, como diretor-geral e pedagógico, uma das instituições mais antigas e respeitadas do sul de Minas: o Instituto Gammon, em Lavras — escola onde estudei boa parte da vida e também onde minha mãe, professora de inglês, lecionou durante anos.

Certo dia, eu devia ter uns 12 ou 13 anos, meu pai chegou em casa contando que aquele ano letivo seria particularmente tumultuado. A ameaça de greves de professores em toda a cidade e região começava a sair do papel e tomar corpo. Lembro, como se fosse ontem, que o telefone da minha casa não parava de tocar. Durante algumas semanas, meu pai foi o interlocutor entre sindicatos, professores, donos de escolas, pais e políticos. Apesar da gravidade de uma greve geral de professores em toda a região, o professor Monteiro, como meu pai era chamado, sempre encerrava as ligações com calma. Preocupado, lógico, mas sereno. Mas naquele dia, especificamente, ele estava inquieto. Parecia que não havia mais como contornar os ânimos de muitos e que algo grande e ruim para todos seria inevitável. Eu estava à mesa almoçando com a minha mãe quando meu pai terminou mais uma ligação e, claramente frustrado, disse: “O que Reagan faria?”.

Fiquei com aquele nome na cabeça e cresci ouvindo histórias sobre esse tal de Reagan. Quem era o cara por quem o meu ídolo tinha enorme admiração, que sempre mencionava em tempos de animosidade e insegurança e sempre inspirava meu mentor diante de algumas incertezas?

Foi com o meu pai que também ouvi pela primeira vez o nome de Margaret Thatcher e Mikhail Gorbachev. Quando Thatcher chegou ao poder, em 1979, muitos no Ocidente acreditavam que a Guerra Fria não podia ser vencida. Quando deixou o cargo, o Muro de Berlim havia caído e a Europa Oriental havia sido libertada. Um ano depois, a União Soviética desmoronou no lixo da história. A democracia e a liberdade estavam avançando, e o mundo assistia às ações do trio espetacular que deu a maior contribuição para que isso pudesse acontecer: Thatcher, Reagan e o papa João Paulo II. E foi com meu pai, em muitas conversas na mesa da cozinha, que ouvi não apenas pela primeira vez os nomes desses líderes históricos, mas atualizações do que acontecia no mundo. As conversas que tivemos durante décadas sobre esses ícones mundiais que mudaram o curso da humanidade são um legado preciosíssimo que tenho comigo.

Presidente Reagan, com a então primeira-ministra da Inglaterra, Margaret Thatcher, durante um almoço de trabalho em Camp David, em 1984 | Foto: Wikimedia Commons

Foi também graças ao meu pai que aprendi quem eram José Roberto Guzzo e Augusto Nunes. As revistas semanais para as quais esses dois mestres escreviam chegavam religiosamente toda sexta-feira em casa. Antes de qualquer notícia, meu pai sentava-se à mesa da cozinha e passava as páginas até chegar aos artigos de Guzzo e Augusto. Do quarto, era possível ouvi-lo de vez quando falando com ele mesmo, ou quem sabe com os colunistas, com seu delicioso sotaque mineiro: “Mas o que isso minha gente…”. Bastava minha mãe aparecer na cozinha e ele dizia para ela como se estivesse oferecendo um doce irresistível: “Senta aqui, Maria. Você precisa ler o Guzzo hoje!”. Assuntos controversos e importantes que precisavam ser debatidos com professores em algum momento na semana? Sem problema. Meu pai usava uma tática infalível e sem o menor confronto: os artigos de Augusto Nunes eram “despretensiosamente” deixados abertos na mesa do cafezinho da sala dos professores. Em pouco tempo, o debate saudável girava em torno dos textos, com importantes pontos vencidos para a visão liberal que meu pai sempre teve, mas que às vezes encontrava resistência em alguns professores.

E parece que foi ontem quando Augusto e Guzzo me convidaram para um jantar em São Paulo, pela ocasião de uma visita que eu fazia ao Brasil. Como já éramos amigos e já havíamos nos encontrado em outras ocasiões, fiquei feliz em vê-los novamente. Para a minha surpresa, a conversa dessa vez era sobre um projeto que estava prestes a nascer — a Revista Oeste — e o interesse para que eu fizesse parte dele. Curiosamente, em uma daquelas sacadas do destino, nessa noite em particular, eu havia levado dois presentes para os meus dois mestres, dois livros sobre a vida de Ronald Regan. Meu pai nos deixou em 2012, mas tenho certeza absoluta, diante da imensa admiração que ele tinha por Guzzo e Augusto, que ele ajudou a mexer nessa trama lá de cima para que o meu caminho profissional chegasse até esses mestres.

Há outras tantas histórias com o meu pai que, sim, dariam um livro. Histórias e conversas pessoais que me marcaram e mudaram minha vida, como no ano em que fiquei grávida ou quando decidi me aposentar do esporte.

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Mas há um outro lado do meu pai que só conhecemos em sua totalidade e beleza após a sua morte. O lado do verdadeiro cristão, homem de fé, ou simplesmente um ser humano digno e correto em ajudar o próximo sem contar a ninguém, sem anunciar aos quatro ventos a bondade feita, ou se agarrar a uma das pragas da atual sociedade imediatista e narcisista: a sinalização de virtude.

Durante o velório do meu pai, minha irmã e eu percebemos muitas pessoas chorando copiosamente como nós estávamos, embora essas pessoas não fossem familiares, amigos ou conhecidos. Alguns se apresentaram, prestaram sua solidariedade e contaram suas histórias com o meu pai. Um rapaz, na casa dos 30 anos e com uma filhinha de uns 3 anos, se aproximou e nos contou como meu pai o ajudou a se livrar das drogas, depois que toda a família havia desistido dele e depois de anos consumindo drogas e furtando objetos em casa para sustentar seu vício. Ele contava, com lágrimas nos olhos, como meu pai, aos poucos, de encontro em encontro, foi convencendo-o a se internar em uma clínica de reabilitação. Depois de convencido, meu pai encontrou a clínica e fez um acordo com o dono para pagar o tratamento, que durou quase um ano. Depois de sair de lá, meu pai foi o avalista para seus empregos durante seu duro recomeço no mercado de trabalho. Passados alguns anos, o rapaz se casou, teve duas filhas e agora trabalha como bancário em uma cidade próxima a Lavras. Ele nos relatou em detalhes uma relação de anos com o meu pai, como um mestre e um amigo que teve. E nós, da família, nunca soubemos dessa história.

Assim como esse caso, ao longo dos meses que se seguiram à morte do meu pai, mais histórias como essas não paravam de chegar até nós. Pessoas que foram amparadas emocional e financeiramente pelo meu pai sem que nunca soubéssemos. Histórias incríveis de gente humilde e de gente abastada que foi ajudada de alguma maneira pelas palavras e pelas ações do meu pai. Em algumas circunstâncias, eu pude testemunhar a entrega do meu pai a outras pessoas, mas jamais imaginei que sua dedicação — na mesma intensidade em que ele se dedicava à nossa família — seria tão abrangente e profunda a pessoas muito fora do nosso círculo familiar e de amizade. E ninguém, a não ser as pessoas envolvidas, soube da extensão da bondade do Professor Monteiro. Esse é mais um legado de um homem que seguiu o que está no livro de Mateus (um de seus favoritos junto com os Salmos), capítulo 6, versículos 2, 3 e 4, na Bíblia:

“Por essa razão, quando deres um donativo, não toques trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Com toda a certeza vos afirmo que eles já receberam o seu galardão. Tu, porém, quando deres uma esmola ou ajuda, não deixes tua mão esquerda saber o que faz a direita. Para que a tua obra de caridade fique em secreto: e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará”.

Foto: Shutterstock

Em uma afluente sociedade pós-moderna de liberdade e oportunidades quase ilimitadas, celebridades, acadêmicos, políticos, jornalistas carreiristas, atletas milionários mimados e “influencers” lutam pela relevância em um sentido revolucionariamente vazio, tentando vender tolerância e amor ao próximo através da sinalização de virtude. As trombetas sendo tocadas nas páginas de jornais, noticiários e nas redes sociais, que são infestadas de “bondade” e que se tornaram uma epidemia de hipocrisia.

A internet virou uma grande e vazia batalha de egos: quem sabe “informações privilegiadas”, quem tem a “palavra certa” para tudo e todos

Em uma era em que o pecado é definido principalmente como “crimes de pensamento” ou a raça/classe/gênero às quais alguém pertença, os ricos, influentes e a elite cultural — famosa por suas obras ou apenas efêmera pelas redes sociais — precisam empacotar suas virtudes e colocar na vitrine. Talvez para compensar seu próprio senso de pecado ou com medo de que suas próprias vidas sejam antitéticas às ideologias que defendem — ou às vezes simplesmente como um movimento de carreira sábio —, essa gente inunda o mundo virtual com “bondades” que precisam ser anunciadas através de incontáveis fotos e textos que demonstram o tamanho do altruísmo daquela pessoa. Não é raro chegar ao fim desses textos ou stories no Instagram e se deparar — depois de uma chuva de “bondade e preocupação com outros” — com um link para comprar algum curso naquele perfil. O que já foi algo quase exclusivo da esquerda, a sinalização de virtude é agora o refúgio dos canalhas em todo o espectro político, ideológico e social.

Olhem ao redor. Pessoas que surfaram na onda “conservadora/liberal” nos últimos quatro anos, que venderam cursos sobre os pilares do conservadorismo, da liberdade econômica etc., passaram a demonizar a administração de Jair Bolsonaro como um todo pelo fato de o atual presidente não ser um conservador “puro-sangue” (Ora, quem é no Brasil?). Quando as eleições se aproximaram, eles se reaproximaram do movimento para vender livros, cursos e pacote de bondades à audiência do presidente. E assim segue o ciclo.

A “sinalização de virtude”, de acordo com o Dicionário Cambridge, é “uma tentativa de mostrar a outras pessoas que você é uma boa pessoa, por exemplo, expressando opiniões que serão aceitáveis para elas, especialmente nas mídias sociais”. A expressão é frequentemente usada para sugerir que a virtude que está sendo sinalizada é exagerada ou insincera. Para vender, aumentar o alcance, ter “likes”, vender produtos e estar sob o holofote, a falsa ou exagerada virtude toma conta do mundo virtual. A internet virou uma grande e vazia batalha de egos: quem sabe “informações privilegiadas”, quem tem a “palavra certa” para tudo e todos, quem vai à missa todo domingo ou é o cristão perfeito, quem está sempre amparando a dor dos injustiçados e daqueles que passam por momentos difíceis… Tudo anunciado aos quatro ventos em trombetas virtuais e em sequências intermináveis de posts.

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Não somos perfeitos. Fato. Mas em que ponto da história recente nos tornamos tão vazios, tão falsos, tão imediatistas? E diante de tanta liberdade, tanta informação? A sinalização de virtude é agora um substituto barato e prolífico para a virtude real. A virtude — ou a sinalização dela — tornou-se amplamente proposital. Não é mais entendida como algo que exija dedicação em silêncio, mas agora reside em grande parte no defender as “crenças certas” e “estar do lado certo de uma causa” — muito mais na ideia do que no ato. Você condena as coisas corretas? Defende o justo e faz isso publicamente? Ponto pra você.

O exagero em demonstrar “bondades” está tornando nossa sociedade mais dura, vazia. Estamos focados demais em demonstrar preocupação com os outros — e sinalizar essa preocupação — sem termos nossas casas em ordem. Como Jordan Peterson, psicólogo canadense, sempre aponta: “Arrume sua cama primeiro antes de querer consertar o mundo”.

O mundo anda doente. Neste Natal, desligue seu celular, desligue a TV, saia das redes sociais. Há uma razão pela qual Madre Teresa disse que a maneira de mudar o mundo é ir para casa e amar sua família. Ela conhecia a tristeza e a injustiça do mundo, e também conhecia a solução.

Desejo a todos um Natal repleto de boas conversas com a sua família. Páginas ricas e coloridas que serão contadas por filhos e netos no futuro com prosas registradas na cozinha, e não nas redes sociais.

Voluntários distribuem comida quente para os necessitados no inverno, antes do Natal, na Polônia | Foto: Shutterstock

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