sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

'Minibio do mané', por Guilherme Fiuza

 

Ilustração: Montagem Revista Oeste/Shutterstock


Sobre o povo que continuou nas ruas exigindo que o país seja recolocado dentro da lei, mané acha que essas pessoas vão se cansar


Era uma vez um mané.

Ele era muito educado.

Achava que o mundo se dividia entre os educados e os não educados.

Vivia dizendo que “um lado” (o dele) era bom e o “outro lado” era ruim.

Sempre que alguém do “seu lado” estragava tudo na hora decisiva, o mané dizia que na verdade esse alguém sempre tinha sido “do outro lado”.

Ou seja: mané vivia num lugar seguro.

Além de educado, era civilizado e legalista.

Um sujeito limpo que defendia eleições limpas.

Quando o povo foi às ruas pedir transparência no processo eleitoral, mané evidentemente apoiou.

Quando a Justiça barrou a mudança que aumentava a segurança do processo eleitoral, mané lamentou. Mas decisão judicial não se discute, se cumpre.

Assim age um legalista educado, superior ao “outro lado”.

A eleição foi se aproximando e alguns inconformados continuavam pedindo mudança no processo de votação. Mané não entrava nessa. Achava uma conversa extemporânea, um ruído lateral.

Mané confiava no seu candidato. Por isso aquele papo de fraude começou a irritá-lo. Tirava o foco, parecia desculpa antecipada para derrota.

Ele estava focado na vitória. Um sujeito positivo, afirmativo, confiante. Sem tempo para lamúrias.

Veio o primeiro turno da eleição e o candidato do mané ficou em segundo lugar. Em primeiro ficou o candidato descondenado pelos mesmos que barraram o aumento da segurança eleitoral. Coincidência.

O candidato do mané fez campanha no país inteiro e foi apoiado intensamente pelo povo em todos os cantos do território. Ele perdeu no primeiro turno para o candidato que não podia andar na rua e só fazia comício para plateias controladas.

Apesar disso, o adversário do candidato do mané teve a maior votação já conseguida por um presidenciável no primeiro turno.

Mané se irritou de novo com alguns do “seu lado” que estranharam a performance recorde de um candidato que vivia às escondidas e pediam melhor aferição do sistema de votação. Mané achava que o momento era de focar em novas alianças para “virar” a eleição.

Mané ficou otimista com o astronauta e o Sergio Moro no Senado. Acha que agora vai

Contra os que insistiam em suspeitar de fraude, Mané fez um lindo discurso legalista, dizendo ser um respeitador das instituições e atacando os negacionistas e chorões do “seu lado” que não sabiam se comportar numa democracia nem aceitar as regras do jogo.

Mané foi confiante para o segundo turno, certo de que seu candidato ia “virar” a eleição.

Afinal, a popularidade que já era alta só podia ter crescido ainda mais com a intensificação da campanha, com os encontros vibrantes com o povo e com as entrevistas que bateram recordes de audiência no YouTube — com índices que o adversário nem sonhava alcançar.

Mas o resultado do segundo turno da eleição surpreendeu o mané. Seu candidato perdeu de novo para o adversário sem povo.

Só que o mané é “resiliente” (ele ama essa palavra desde que todo mundo passou a repeti-la anteontem). Disse que não vai se abater.

Afirmou que a vida continua, que é preciso aprender com os erros! (Ele acha que seu candidato cometeu vários erros que devem ter atrapalhado a votação.)

Mané ficou otimista com o astronauta e o Sergio Moro no Senado. Acha que agora vai.

Ele até acha que foi meio estranho o seu candidato a presidente ter perdido em áreas em que os candidatos dele ao Congresso ganharam de lavada, mas resultado de eleição não se discute. Jogo jogado.

Acha perda de tempo discutir a multidão de irregularidades apresentadas pelos técnicos no processo que define a maior representação democrática do país.

Mané é construtivo, não reativo. Ele olha para a frente.

Sobre o povo que continuou nas ruas exigindo que o país seja recolocado dentro da lei, mané acha que essas pessoas vão se cansar.

Ele já tomou banho, mudou de roupa e está radiante no papel de oposição ao descondenado.

Foi para ele que o filósofo de várzea L. R. Barroso proferiu em Nova York a sentença imortal: “Perdeu, mané”.

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