quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

'Edson partiu. Pelé é eterno', diz Augusto Nunes

 Ser feliz é ver o Deus do futebol em ação

Trecho do documentário <i>Pelé Eterno</i> | Foto: Divulgação/Cortesia/Universal
Trecho do documentário Pelé Eterno | Foto: Divulgação/Cortesia/Universal

Há sempre uma lógica por trás de toda loucura, alguém pondera quando confrontado com maluquices indecifráveis. A frase pode valer para outros países. Não é o caso do Brasil. Porque é uma loucura sem vestígios de lógica o tratamento áspero dispensado por tantos nativos do País do Futebol ao maior jogador de todos os tempos. Nunca se viu nem se verá algo parecido, penso ao revisitar Pelé Eterno, o admirável documentário de Aníbal Massaini lançado em 2004.

Espantosamente, não são poucos os que insistem em confundir Edson Arantes do Nascimento com Pelé, e atribuem equívocos eventualmente cometidos por sua camuflagem humana à entidade de tal modo misteriosa que a nenhum mortal será dado explicá-la. Essa miopia impede que se enxergue o abismo sideral que separa um deus atemporal do mineiro de Três Corações que acaba de partir aos 82 anos de vida.

Em qualquer país, as filas de espectadores ansiosos pelas imagens de Pelé Eterno se teriam estendido por centenas de quilômetros, provocando assombrosos engarrafamentos humanos – e ai de quem esboçasse algum indício de contrariedade, porque o mais diminuto sinal de insatisfação haveria de configurar uma afronta intolerável aos milhões de súditos mobilizados para a reverência coletiva ao monarca. Mas o Brasil não é um país qualquer. Vi o filme cinco vezes. Em todas sobrava lugar na sala.

Multidões já se acotovelaram nos comícios de Lula para aplaudir o milagreiro de botequim prometendo o impossível. Em contrapartida, incontáveis brasileiros ignoraram o filme que mostra o gênio incomparável fazendo o impossível — e mais um pouco. Se o protagonista fosse Maradona, por exemplo, os cinemas da Argentina estariam com lotação esgotada até 2050, e futuros avós disputariam a socos e pontapés um ingresso para o neto que nem nasceu. Mas o Brasil não é para amadores, ensinou Tom Jobim.

Pelé foi ironizado por ter pedido mais atenção para as crianças na noite do milésimo gol. Lula, um gigolô de adultos infantilizados pela idiotia, especializou-se na repulsiva exploração da ignorância de gente para quem viver é não morrer de fome. O inventor de jogadas irrepetíveis viu-se cobrado por qualquer miudeza, e se expôs a zombarias ao escorregar no inglês.

O estadista de galinheiro continua assassinando o português sob salvas de palma dos áulicos. Pelé Eterno mostra quase 400 gols e dezenas de jogadas inverossímeis do Rei sem rivais nem herdeiros. Os que nunca viram num estádio a lenda em movimento foram obrigados a render-se às imagens surreais. O Atleta do Século tinha mesmo equilíbrio de ginasta, rapidez de velocista, força de decatleta, resistência de maratonista, coragem de brigador de rua. Com pouco mais de 1,70 metro, chegava mesmo a altitudes inatingíveis para os pobres gigantes que tentavam impedir a cabeçada letal. Aquele jogador nascido destro aprendera mesmo a usar a perna esquerda com tamanha eficiência que as plateias acabaram esquecendo qual fora a escolha original da natureza.

Graças às imagens resgatadas por Aníbal Massaini, os que viram da arquibancada Pelé jogando enfim puderam ter certeza de que o que parecia um sonho acontecera de verdade. Existiu mesmo uma divindade que somou o arranque de um Formula-1 na largada e a ginga de Muhammad Ali, capaz de levitar e mover-se no espaço como Nureyev, flutuar sobre os adversários como Michael Jordan, dissimular os movimentos seguintes como Garrincha e manter todo o tempo o gramado inteiro sob a estreita vigilância de quem alcançava, com olhar de fera, o milagre dos 360 graus.

Que Maradona, que nada. Que Messi, que nada. Como comparar qualquer outro ao craque que ganhou a primeira Copa do Mundo aos 17 anos – e nos 17 seguintes seria titular absoluto da seleção brasileira? E faria 1.281 gols? E provaria com os gols que por muito pouco não fez – como aquela cabeçada defendida pelo goleiro inglês Gordon Banks, ou aquele chute cruzado depois da finta mágica no uruguaio Mazurkievski – que pode haver no futebol a imperfeição mais que perfeita? Como pôde haver um camisa 10 capaz de apressar o imediato cessar-fogo entre tropas que preferiram perder a guerra civil a perder uma apresentação do Rei, e adiaram ataques inadiáveis para vê-lo atacando, solitário e invencível, a grande área inimiga?

Com a morte de Edson Arantes do Nascimento, a versão humana do Deus dos estádios agora descansa. Pelé é eterno, e viverá para sempre. Em homenagem ao supercraque imortal, Pelé Eterno deveria ser reapresentado uma vez por semana em todas as cidades e todos os lugarejos do Brasil. E todo vivente deveria ser instado por lei a esquecer ao menos por um dia quaisquer inquietações para desfrutar de duas horas de deslumbramento numa sala escura. Porque ver Pelé em ação é ser feliz.

Com a morte de Edson Arantes do Nascimento, a versão humana do Deus dos estádios agora descansa. Pelé é eterno, e para sempre estará em ação. Em homenagem ao supercraque imortal, Pelé Eterno deveria ser reapresentado uma vez por semana em todas as cidades e todos os lugarejos do Brasil. E todo vivente deveria ser instado por lei a esquecer ao menos por um dia inquietações de todos os gêneros para viver duas horas de deslumbramento numa sala escura. Porque ver Pelé jogando é ser feliz.

Revista Oeste