sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

'A imensidão dos sem-sigla', por Augusto Nunes

 

Manifestações durante as comemorações do Bicentenário da Independência do Brasil, em Brasília (7/9/2022) | Foto: Isac Nóbrega/PR


Em outros países, partidos vivem à procura de eleitores. No Brasil, milhões de eleitores procuram um partido


Todos defendem abertamente a redução da carga tributária e do mastodonte administrativo, a privatização de empresas estatais, o estímulo à livre iniciativa, a aceleração de reformas estruturais, a preservação de valores e princípios morais, a prevalência da meritocracia, o fortalecimento do Estado de Direito, o respeito às liberdades democráticas e a obediência à Constituição. Todos votaram em Jair Bolsonaro (e contra o PT) nas eleições de 2018 e de outubro passado. Mas aprenderam a sobreviver por conta própria, e estão prontos para escapar com boa saúde do impacto causado pela morte física ou política do líder, ao contrário das correntes políticas batizadas com o acréscimo de um ismo ao nome do chefe supremo.

cargos comissionados
Luiz Inácio Lula da Silva | Foto: Agência Brasil

Nos anos 1950, por exemplo, amparados em notáveis performances eleitorais, devotos do getulismo, do janismo e do ademarismo acreditaram na imortalidade das três seitas. O suicídio de Getúlio Vargas, a renúncia de Jânio Quadros e a cassação do mandato do governador Adhemar de Barros reduziram as fantasias a farrapos. Nascido em 1980, o PT pareceu um partido em gestação até substituir o esboço de programa de governo por um projeto criminoso de poder e virar quadrilha. O Partido dos Trabalhadores não existe mais. Sobrou o lulismo. Como todo populista, o chefão sufocou ainda no útero possíveis sucessores. Vai arrastar para o túmulo a seita que tem num ladrão o seu único deus.

A fotografia de Jânio Quadros com os pés enviesados venceu o Prêmio Esso de Jornalismo de 1962 | Foto: Erno Schneider

Bolsonaro lidera sem concorrentes as multidões em busca de partido, e também não tem sucessores eleitoralmente musculosos. Mas a fusão de dogmas conservadores e ideias liberais que baliza a rota da direita moderna já é suficiente para garantir a chegada à maioridade independente. Como ocorre em outras nações, o Partido Republicano norte-americano brilhou mais intensamente quando conduzido por Ronald Reagan, mas manteve a boa saúde depois da perda do estadista que apressou a queda do Muro de Berlim. A direita brasileira conseguirá sobreviver a Bolsonaro. E num partido de verdade a emergência de jovens líderes é tão natural quanto a mudança das estações. “Partido político é um grupo organizado, legalmente formado, com base em formas voluntárias de participação orientada para ocupar o poder político”, informam os dicionários. Tentando ser menos bisonho, um texto divulgado pela Justiça Eleitoral ficou igualmente confuso e mais indigente: “Partido político pode ser definido como uma entidade formada pela livre associação de pessoas, com uma ideologia em comum, cujas finalidades são assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e defender os direitos fundamentais”. O palavrório é de tal forma raso que, na imagem de Nelson Rodrigues, uma formiga conseguirá atravessá-lo com água pelas canelas.



Quem percorre a floresta de vogais e consoantes dedicado a análises e explicações sobre partidos políticos constata que o grande ausente é o povo. Nos tempos do Império, tanto nobres quanto plebeus nem piavam na escolha de ministros. A montagem do gabinete — ora formado por integrantes do Partido Conservador, ora composto de filiados ao Partido Liberal — era atribuição de Dom Pedro II. O imperador fez e desfez até errar a mão na derradeira escolha. Irritados com a escalação da equipe ministerial, os militares monarquistas Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto proclamaram a República, mandaram Pedro II para o exílio e assumiram o poder. Sem qualquer consulta ao recém-nascido Partido Republicano. E sem sequer explicar à gente comum o que estava acontecendo.

Michelle Bolsonaro
O presidente Jair Bolsonaro e a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, durante desfile cívico-militar do 7 de Setembro, que neste ano comemorou o bicentenário da Independência do Brasil | Foto: Agência Brasil

“O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava”, registrou o jornalista Aristides Lobo. “Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada militar.” Durante a República Velha, príncipes civis indicados pela elite do Partido Republicano Mineiro e do Partido Republicano Paulista se revezaram no governo federal. Em 1930, o Partido Republicano Rio-Grandense decidiu que chegara a sua vez e, derrotado na disputa eleitoral invariavelmente fraudada, chegou ao poder pelo atalho da revolução. Getúlio concedeu às mulheres o direito de votar, mas proibiu a existência de qualquer coisa que lembrasse partido, resolveu que eleição é perda de tempo e dispensou o eleitorado da trabalheira de escolher candidato.

Criados depois da queda do Estado Novo, o Partido Social Democrático, a União Democrática Nacional e o Partido Trabalhista Brasileiro foram dissolvidos aos 21 anos de vida, quando começavam a ganhar feições adultas e a ocupar espaços eleitorais claramente demarcados. Obrigados a reagrupar-se em dois sacos de gato — Arena e MDB —, políticos despejados da casa antiga perderam o rumo, demitiram o juízo e passaram a render-se à polarização imposta a cada quatro anos pela sucessão presidencial.

O PT com Lula contra o PSDB de Serra, depois Alckmin. O PT com Dilma contra o PSDB com Serra, depois Aécio. O PT com Lula na cadeia e Haddad no palanque contra o PSDB de Alckmin foi abortado em 2018, quando Bolsonaro chegou e a direita enfim mostrou seu rosto. Enquanto consolidava o domínio das ruas, tratou de ganhar a eleição. Então como agora, portentosas manifestações ao ar livre aconselharam os companheiros a ficar em casa ou consolar-se com discurseiras para plateias amestradas.

Partidos políticos | Foto: Reprodução

Em outubro, apesar do cerco movido pela babel que aglomerou cabos eleitorais togados, jornais agonizantes, lojinhas de porcentagem, carolas convertidos ao socialismo de picadeiro, espertalhões com doutorado em vigarices eletrônicas e outras obscenidades, o Grande Satã sitiado conseguiu  — nas contas do TSE — mais de 58 milhões de votos. É gente de sobra para o parto da primeira oposição de verdade concebida neste século.

O país tem 32 partidos, jura o TSE. Nenhum é real, corrigem os vacinados contra surtos de estrabismo. É preciso ensinar ao ex-presidiário — e a seu exército dividido entre os incapazes e os capazes de tudo — o que é uma genuína oposição. O partido da direita democrática tem povo, tem programa e nascerá de olho em duas urgências. Que as aves de rapina voem para longe. E que a liberdade abra as asas sobre nós.

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Revista Oeste