Deputado Federal Deltan Dallagnol | Foto: Wikimedia Commons
Brasil assiste ao retorno de uma quadrilha à cena do crime, com a cumplicidade do Supremo Tribunal Federal e de um Congresso covarde
Na noite de sexta-feira 17, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu soltar o ex-governador Sérgio Cabral, depois de cumprir seis dos 420 anos de condenações pelo vício de roubar, como ele mesmo confessou. Ao deixar a cadeia, quatro dias depois, Cabral jogou a última pá de cal no legado da maior operação anticorrupção da história, a Lava Jato.
Ironicamente, o voto decisivo que colocou o político em liberdade foi do ministro Gilmar Mendes, o maior crítico da operação no Judiciário. Cabral foi solto 45 dias depois da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, beneficiado com o fim da prisão em segunda instância no país. Para muitos estudiosos do Direito, foi essa a canetada que deu origem a uma avalanche de decisões para a destruição da Lava Jato na Suprema Corte. No caminho de Lula até Cabral, centenas de envolvidos no propinoduto da Petrobras e no cartel de grandes empreiteiras tiveram a ficha limpa. Alguns vão voltar à cena do crime em janeiro, como um dia prognosticou Geraldo Alckmin, hoje vice-presidente eleito.
Também o legado da operação tem sido rasgado nesse retrocesso nefasto imposto pelo Judiciário, com a cumplicidade dos parlamentares. O último golpe foi conseguir desfigurar, com votos de parlamentares encrencados com a Justiça, a Lei das Estatais, para beneficiar o petista Aloizio Mercadante. Ele vai comandar a poderosa máquina de empréstimos do BNDES, um dos focos de corrupção da era petista. O próximo passo já anunciado será tentar reverter os acordos de leniência feitos pelas empreiteiras para devolver dinheiro surrupiado.
Outra novidade da semana: o advogado Augusto Botelho, que era conhecido como porta-voz da frente anti-Lava Jato de empreiteiras, foi escolhido para a Secretaria Nacional de Justiça pelo futuro chefe da pasta, o comunista Flávio Dino.
Uma lista de procuradores que trabalharam nas investigações já foram punidos ou respondem a processos no Conselho Nacional do Ministério Público. O último punido foi o ex-coordenador do grupo no Rio de Janeiro, Eduardo El Hage, do mesmo Estado de Sergio Cabral.
O caso mais conhecido é o do ex-chefe da Lava Jato em Curitiba, Deltan Dallagnol, eleito deputado. Ao lado de Sergio Moro, ele é um dos símbolos da maior operação anticorrupção no país. Dallagnol conversou com Oeste nesta quinta-feira, 21. “Qual a mensagem que foi passada pelo sistema? Que vale a pena ser corrupto no Brasil”, diz.
Confira os principais trechos da entrevista.
O senhor chega ao Congresso num momento em que o Judiciário avançou de forma sem precedentes contra o Legislativo. Alguns parlamentares chegaram a afirmar que o Supremo Tribunal Federal “fechou” o Congresso.
O Supremo Tribunal Federal tem três problemas: insegurança jurídica, ativismo judicial e abuso de poder. O primeiro ocorre, principalmente, com o excesso de liminares. A vontade de um ministro da Corte passa por cima do papel de 513 deputados e 81 senadores eleitos. O segundo é porque o Supremo não respeita suas próprias decisões e muda as regras e as aplica para o passado, como aconteceu com a Lava Jato. O ativismo faz com que o STF avance em competências que são dos demais Poderes, especialmente do Legislativo. Já houve casos de ativismo judicial em acordo com a sociedade. Por exemplo, o fim do nepotismo. O Congresso não legislava sobre esse tema, porque os parlamentares tinham interesse. Também há casos distintos. Por exemplo, a permissão do aborto até três meses de gestação, a proibição de operações policiais em favelas com helicópteros. Isso acontece porque prevalece a opinião de um grupo de ministros com perspectivas “progressistas”, que contrasta com a maioria conservadora da sociedade.
E o abuso de poder do Judiciário?
Quando os magistrados ultrapassam as regras legais. Decidem que a Receita Federal não pode fiscalizar os próprios ministros ou familiares. Ou quando um ministro do STF rasga a inelegibilidade de um presidente que sofreu processo de impeachment, como ocorreu com Dilma Rousseff (na época, a decisão foi costurada pelo então presidente da Corte, Ricardo Lewandowski, e o ex-presidente do Senado Renan Calheiros).
“Mesmo não constatada nenhuma ilegalidade no uso de recursos para a força-tarefa da Lava Jato, decidiram que seriam gastos antieconômicos. Foram usados R$ 3 milhões ao longo de anos, mas a operação recuperou R$ 15 bilhões desviados”
O Congresso abriu mão do seu papel de contrapeso na Praça dos Três Poderes, como nesse caso da ex-presidente Dilma Rousseff e, recentemente, da prisão do deputado Daniel Silveira, que tinha imunidade parlamentar?
Sim, o Congresso deveria ser proativo para impedir o atropelo das linhas da Constituição Federal. O Congresso pode regular matérias, tem o papel de contrapeso entre os Poderes. A razão desse desequilíbrio se chama foro privilegiado. Por causa dele, as autoridades, como os parlamentares, são investigadas e julgadas pelo STF. Grande parte dos deputados e senadores tem investigações sobre o seu passado na Corte e temem o revanchismo.
Por falar em revanchismo, estamos diante de uma escalada no revanchismo contra a Lava Jato?
Há dois fenômenos interligados acontecendo: o esvaziamento da Lava Jato, por meio da anulação de processos, e a destruição dos instrumentos de combate à corrupção. É possível listar uma série de ações. Começa ao transferir para a Justiça Eleitoral as investigações de caixa dois. Em seguida, mudaram a lei, para impedir novas prisões, e os réus delatados passaram a ser ouvidos depois dos delatores. Vieram anulações dos casos de Antônio Palocci, João Vaccari Neto, Eduardo Cunha, André Vargas e da refinaria de Pasadena, no Texas, comprada pela Petrobras. Houve o episódio do Lula na questão processual da vara em que a investigação ocorreu. O fim da prisão em segunda instância tornou impossível punir o crime de colarinho-branco. O esvaziamento da Lei de Improbidade Administrativa. Agora a Lei das Estatais, criada para proteger a Petrobras e o BNDES, foi desfigurada. É claro que há um revanchismo.
Houve vingança também contra juízes e procuradores que atuaram na Lava Jato. Ocorreu com o senhor, com os juízes Sergio Moro e Marcelo Bretas, e outros no Conselho Nacional do Ministério Público.
Começo pelos ministros do Tribunal de Contas da União (TCU) que foram delatados. O tribunal contrariou todos os pareceres e as auditorias para condenar o ex-procurador-geral Rodrigo Janot e a mim. Mesmo não constatada nenhuma ilegalidade no uso de recursos para a força-tarefa da Lava Jato, decidiram que seriam gastos antieconômicos. Foram usados R$ 3 milhões ao longo de anos, mas a operação recuperou R$ 15 bilhões desviados. Foi um processo tocado com prazo recorde no ano da eleição. Foram instalados procedimentos contra o ex-juiz Sergio Moro sem pé nem cabeça. O Conselho Nacional de Justiça investiga o juiz Marcelo Bretas. O STJ me condenou a indenizar Lula, mesmo que as instâncias inferiores tenham me absolvido. No mesmo dia em que Sérgio Cabral foi solto, condenado a mais de 400 anos de prisão, que confessou ter US$ 100 milhões no exterior para farras em viagens, dois procuradores do Rio de Janeiro foram condenados no Conselho Nacional do Ministério Público, por um erro administrativo de um assessor. Era um caso que envolvia os ex-senadores do MDB Romero Jucá e Edison Lobão. O coordenador da Lava Jato no Rio foi condenado, em vez de receber uma medalha. Sérgio Cabral é um ícone da corrupção, porque a Lava Jato comprovou que ele embolsou o dinheiro, não era uso de caixa dois.
O presidente eleito e sua equipe já falam também em rever os acordos de leniência de empresas que confessaram desvios de dinheiro no Petrolão.
Com tantas anulações sucessivas, quem fez acordo de leniência e devolveu dinheiro está se achando otário. Afinal, quem não fez se safou. Qual a mensagem que foi passada pelo sistema? Que vale a pena ser corrupto no Brasil. Há uma inversão de valores. Quem pratica o bem é punido e quem pratica o mal prospera.
Antes de se aliar ao PT, Geraldo Alckmin falava no passado que a quadrilha queria voltar à cena do crime. Voltaram. O senhor acha que vão repetir os esquemas de corrupção?
O risco existe, os sinais estão aí para quem quiser ver. Lula nomeou 67 pessoas investigadas, delatadas ou condenadas para a equipe de transição. No seu discurso de vitória, estava ao lado o deputado José Guimarães, cujo assessor foi preso com US$ 100 mil na cueca e acabou beneficiado pela prescrição. O Lula viajou para o exterior num jatinho de um empresário investigado em desdobramento da Lava Jato. Estamos vendo a destruição de instrumentos e leis de proteção a desvios de recursos públicos. Flávio Dino, futuro ministro da Justiça, voltou atrás na nomeação de Eduardo Camata, um delegado que apoiava o combate à corrupção. O Aldemir Bendine, condenado quando era presidente do Banco do Brasil, está fazendo a lista de indicados para BB. Eles perderam a vergonha de ser associados à corrupção. O Lula foi eleito depois de ser condenado.
Por enquanto, o governo eleito não tem base numérica robusta no Congresso.
É uma situação muito parecida com o Mensalão, quando havia falta de governabilidade no Legislativo. Formalmente, a base de partidos de Lula tem 122 deputados e 12 senadores. São necessários 257 deputados e 41 senadores para as votações. No passado, esse problema resultou no Mensalão e no Petrolão. Se eles começarem agora a praticar os mesmos crimes do passado, vão levar anos para descobrir. A Lava Jato encontrou esquemas dez anos depois.
Como proteger a sociedade de novos escândalos agora?
É necessário reconstruir o sistema de combate à corrupção — e a concretização de punições. O ponto de partida é restabelecer a prisão após condenação em segunda instância e acabar com o foro privilegiado. Depois, devolver à Justiça Federal, e não aos Tribunais Eleitorais, as investigações sobre desvios. Por fim, reconstruir a Lei de Improbidade Administrativa. Esse é o básico.
A pergunta que as pessoas mais fazem é: como fazer isso?
Somente com uma coalizão de entidades da sociedade civil. O caminho é mobilizar a sociedade. Os eleitores devem mapear os parlamentares, para saber como eles se comportam no Congresso, cobrar o deputado que elegeu. Tampouco haverá avanço se um terço dos parlamentares tiver acusações de corrupção. É preciso abrir espaço para pessoas novas na política, que estejam de acordo com os anseios dessa coalizão da sociedade.
E no Judiciário? O senhor acha que um dia teremos uma reforma?
É necessária. Porque nossa Justiça é muito cara e não entrega resultados. Não combate a corrupção, e até em litígio cível empresas preferem buscar arbitragens. Ou seja, pagam em dobro: pagam imposto e pagam ao sistema privado, porque o Judiciário não soluciona. O Brasil tem quatro instâncias de julgamento. Isso não existe em nenhum lugar no mundo. Os Estados Unidos têm três, e a Segunda Instância não revisa a Primeira. As partes não chegam à Terceira Instância, que analisa cem casos por ano. Aqui, o STF analisa mil casos. E qual a razão? Porque o Brasil tem dinheiro sobrando para gastar? O país tem 27 legislações tributárias, o custo Brasil só aumenta, porque não há previsibilidade. Sem mudar isso não teremos segurança jurídica.
O ministro Alexandre de Moraes conduz um inquérito perpétuo contra conservadores no Supremo, estendeu sua espada para o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e não dá sinais de que vai parar a caçada. Houve, inclusive, um episódio de censura prévia no país durante as eleições. O que o senhor pensa sobre isso?
Sou defensor da liberdade de expressão, não só por ser um direito preferencial, mas porque é um pilar da democracia. Só se avança democraticamente com construção crítica. E críticas ácidas não podem ser confundidas com ataques à democracia. Não se podem subverter regras de liberdade para instituir censura. Ofensas devem ser analisadas posteriormente no Judiciário, pelas vias legais. Eu fui punido no Conselho Nacional do Ministério Público por exercer a liberdade de expressão, quando critiquei o Supremo Tribunal Federal e o senador Renan Calheiros.
O senhor consegue ficar animado para assumir o mandato nesse cenário que o país está vivendo?
Animado, não. Estou determinado, porque sigo um propósito, que é o senso de mudança para um país melhor. É preciso impedir o retrocesso moral e econômico do PT. Não se pode permitir que a corrupção prospere na vida pública.
Silvio Navarro, Revista Oeste