O terrível festival de lamúrias da Netflix foi um ato de calúnia contra o povo britânico
Que orgia de autocomiseração foi aquela. Que festival interminável de choramingos. Seis horas de duas celebridades ricas, mimadas e contrariadas em uma mansão em Montecito, Califórnia, resmungando para o mundo sobre sua vida difícil. Era tudo de que precisávamos para sobreviver às duras noites do inverno europeu, quando muitas pessoas não podem nem se dar ao luxo de ligar a calefação. Não se preocupem, plebeus, vocês podem sempre esquentar as mãos no brilho incandescente de hipocrisia que emana do duque e da duquesa da Cultura Woke.
A minissérie em seis partes de Harry e Meghan para a Netflix realmente é um espetáculo constrangedor. Até para os padrões do mundo das celebridades — aquela estranha bolha cheia de pessoas que acham que postar um quadrado preto no Instagram vai transformá-las em Rosa Parks — aquilo é ruim. É um abismo enorme de autocrítica. Dois membros da realeza, literalmente, em uma casa que é maior que o quarteirão inteiro da maioria das pessoas reclamando de serem explorados — onde está meu lenço? Mas o que falta aos dois em autocrítica sobra em autoestima. A dupla que nunca conheceu a dificuldade, quanto mais a opressão, de fato se considera herdeira moral de Martin Luther King, com a diferença de que eles marcharam em Montecito, de um palácio a outro, e não em Selma.
O vexame não tem fim. Esses aristocratas descolados reclamam de paparazzi invadindo sua vida, mas convidam a Netflix para filmá-los tendo uma crise emocional na sala de casa. Ninguém invade a privacidade de Harry e Meghan tanto quanto Harry e Meghan. Tudo o que os tabloides fizeram foi tirar fotos de Meg andando por aí em vestidos de £ 5 mil. Ela própria nos oferece os vídeos caseiros, fotos dos filhos, mensagens de texto apaixonadas trocadas com Harry e até uma imagem borrada do príncipe de joelhos pedindo-a em casamento. Quem precisa vasculhar as lixeiras de H&M quando eles mesmos o fazem por você com as câmeras ligadas.
Também temos o complexo de vítima. Sua capacidade de sentir pena de si mesma não conhece limites. É quase paranoia. O palácio declarou uma “guerra contra Meghan”, afirma a advogada dela. E a mídia foi a arma escolhida, emenda Harry. Imagine usar a plataforma global da Netflix para lavar sua roupa suja, dizer ao mundo que seu irmão gritou com você de forma “assustadora”, seu pai mentiu olhando nos seus olhos, e então ter a coragem de acusar os outros de usarem a mídia para atacar você. Depois de nos dar seis horas de sua versão almofadinha do programa sensacionalista The Jeremy Kyle Show, H&M estão proibidos de reclamar das intrigas da imprensa de novo.
A série de Harry e Meghan confirma que o esnobismo muitas vezes usa o disfarce do “antirracismo” hoje em dia
A parte mais feia desse jogo de vitimismo é a afirmação de Harry de que o tabloide Mail on Sunday causou o aborto de Meghan. Ela perdeu o bebê “por causa do que o Mail fez”, ele afirma, fazendo referência ao fato de o jornal ter publicado uma carta que Meghan escreveu para o pai e a subsequente disputa legal dos Sussex. Isso realmente passa dos limites. Abortos espontâneos não são causados por estresse. Se fossem, mulheres cuja vida é infinitamente mais estressante que a de Meghan, mulheres que lutam para sobreviver sofreriam abortos o tempo todo.
Mas, para além do amargo acerto de contas, a coisa mais impressionante sobre a série é seu desprezo por nós. Às vezes parece que o principal alvo da ira de H&M não é o terrível William nem o maligno Mail on Sunday, e, sim, eu e você, a multidão difusa que compra essas publicações, que votou a favor do Brexit e que de vez em quando fala mal de Meghan on-line. A série difama a nação, é um ato de calúnia contra o povo britânico. A ironia: eles posam como os corajosos fugitivos da estranha e sofisticada instituição da monarquia, mas olham com muito mais desdém para as massas, do alto de sua vida de luxos, do que qualquer outro membro da realeza.
É por isso que o Brexit tem tanto peso nos primeiros episódios. Na visão mimada de H&M e dos acadêmicos consagrados por eles para oferecer suas opiniões especializadas, o Brexit é prova de que há algo de podre no Reino Unido. Somos lembrados de que 2016 não foi apenas o ano em que H&M começaram a namorar, também foi o ano em que ocorreu o referendo sobre o Reino Unido permanecer ou não na União Europeia, a convulsão xenofóbica disfarçada de embate democrático, como alguns esnobes na órbita dos Sussex parecem dizer. O Brexit foi um “debate tóxico”, diz David Olusoga, um historiador pró-Meghan. James Holt, diretor-executivo da produtora do casal, a Archewell Foundation, vai além. O referendo criou a “tempestade perfeita” que “deu credibilidade ao jingoísmo e ao nacionalismo e deu a pessoas com opiniões terríveis um pouco mais de força e confiança para dizer o que queriam dizer”, ele desdenha.
E quem sofreu em decorrência desse ato democrático tresloucado? Meghan, ora. O racismo de que ela supostamente foi vítima foi inflamado pelo Brexit, o casal nos informa. Como resume um colunista do Telegraph, o referendo do Brexit foi tão horrível que nossos heroicos aristocratas não tiveram escolha e precisaram “fugir do inferno racista que é a Inglaterra e buscar refúgio no famoso caldeirão cultural harmônico dos Estados Unidos”.
Então H&M não apenas são vítimas dos Cambridge e do Mail on Sunday — eles também são vítimas da democracia. Dos idiotas com suas bandeiras que a Netflix mostra toda vez que o Brexit é mencionado na série. Não consigo lembrar a última vez que a realeza demonstrou um desprezo tão escancarado em relação à democracia. Em que século estamos?
Olusoga vai além no esnobismo que dá forma à série. Em um artigo para o Observer, ele afirma que os tabloides colocaram as massas em uma febre anti-Meghan. Bom, você sabe como nossas pequenas mentes são maleáveis. A “campanha de seis anos” dos jornais contra H&M “deixou uma grande quantidade de pessoas que de outra forma seriam razoáveis, obcecadas e desdenhosas do jovem casal que elas nunca conheceram”, diz ele. Na internet, houve uma tempestade primordial de defensividade, racismo, misoginia, jingoímo e falácia”, continua o autor. Primordial — que escolha de termo curiosa. Ela significa primevo. A primordialidade é uma crença de que as atitudes e a identidade étnica de alguém são fixas e imutáveis. Imagine implicar que boa parte dos britânicos é preconceituosa, enquanto se usam palavras sobre “primordial”.
A série de Harry e Meghan confirma que o esnobismo muitas vezes usa o disfarce do “antirracismo” hoje em dia. A elite cultural indica sua superioridade para a multidão por meio da questão da raça. Enquanto eles têm consciência de raça, nós, leitores atrapalhados do Mail on Sunday assolados pela tempestade primordial, somos burros e preconceituosos. Como esses elitistas ousam nos acusar de racismo? Um dos comentaristas da série é Kehinde Andrews, um acadêmico que já chamou Trevor Phillips, um apresentador negro, de “Pai Tomás” que reforçava estereótipos de gênero. Escutem, Harry e Meghan, não conheço ninguém que faça isso. Só vocês. Saiam daqui com suas bobagens hipócritas, condescendentes e antidemocráticas.
Brendan O’Neill é repórter-chefe de política da Spiked e apresentador do podcast da Spiked, The Brendan O’Neill Show.
Ele está no Instagram: @burntoakboy
Revista Oeste