domingo, 25 de dezembro de 2022

Leonardo Coutinho: Como um pequeno manual de palavras aceitáveis fortalece o autoritarismo

 

Campus da Universidade de Stanford, que lançou uma cartilha sobre palavras ofensivas que precisam ser banidas do vocabulário acadêmico e propõe substitutas| Foto: Pixabay


A Universidade de Stanford, na Califórnia, é uma das melhores universidades do planeta. Segundo este ranking aqui, ela é a terceira mais bem posicionada dos Estados Unidos e do mundo, atrás apenas de Harvard e do MIT, que dividem a mesma vizinhança no estado de Massachusets. Além de zelar pela reputação de seus cursos e pelo nível elevado de seus estudantes, os administradores de Stanford lançaram uma cartilha sobre palavras ofensivas que precisam ser banidas do vocabulário acadêmico – seja ele falado ou escrito.

A medida vai além de um manual de conduta (?) ou um guia de etiqueta (?) acadêmica. Sob o argumento de não ofender ou discriminar, a lista negra (opa! Essa não pode) tem um potencial de restringir a liberdade de pensamento e até mesmo distorcê-lo. “Lista negra”, na lista negra de Stanford, deve se chamar “lista de proibições” ou “lista de negação”.

O conjunto de palavras e expressões consideradas ofensivas é vasto. Quem nunca ouviu ou leu “estadunidense”, inclusive na imprensa brasileira? Pois bem, o pessoal de Stanford sugere banir o termo americano, como referência a quem nasce nos Estados Unidos, sob o mesmo argumento de quem não aceita que os americanos monopolizem o gentílico que pode ser de qualquer um dos 42 países do continente. Para que se referir a um haitiano como haitiano ou a um canadense como canadense se todos são americanos? A solução proposta pela universidade é chamar os americanos de “cidadãos dos Estados Unidos”. Assim, ninguém abaixo do Rio Grande ficará melindrado ou se sentirá diminuído.

Imigrante deve virar “pessoa que imigrou”. Chamar de trabalho escravo a exploração imposta até os dias de hoje a quem é obrigado a trabalhar sem receber salário e em condições precárias e sob ameaça virou sacrilégio. Chamar a escravidão moderna de escravidão está proibido. O “correto” é usar “práticas injustas de trabalho” ou “trabalho mal pago”. Escravidão só está permitida daqui para frente quando se referir aos trabalhos forçados impostos aos negros no passado.

Sob o mesmo argumento, o termo mestre está no bico do corvo. Durante a escravidão nos Estados Unidos, os senhores de escravos eram chamados de “mestres” pelos seus escravos. O mesmo vale para dominar. Quem disser que domina um assunto, está remetendo ao tempo em que homens brancos exploravam negros. Sobrou até para os webmasters, que são os desenvolvedores e administradores de páginas na internet. A expressão politicamente correta para a profissão seria “proprietário do produto web”. Vale muito a pena visitar o projeto de novilíngua para ver quão caricato e extenso é o plano de redesenhar o modo de pensar pelo que se pode ou não dizer.

Os esforços para criar termos inclusivos – originalmente para renomear deficiências físicas, posteriormente aquelas “derivadas do racismo estrutural” e mais recente o léxico relacionado à multiplicidade de identidade sexuais – criou expressões que vão além do ridículo. Chamar mulheres biológicas como “pessoas que menstruam” ou “pessoas com útero” é uma dessas insanidades. Não faz sentido algum deixar de chamar mulher de mulher porque alguém que não nasceu mulher passa a se sentir mulher, mas, por não ser exatamente uma mulher, não se sente incluído e reivindica o direito de abolir o termo mulher. Confuso, não é mesmo?

A lista de Stanford é um guia, não uma obrigação. Dizem seus autores. Mas a prática ensina que não é bem assim. Recentemente, vimos jornalistas puxar a orelha de colegas ao vivo, por uso de palavras banidas. Nas redes sociais, a patrulha é constante. A obrigatoriedade vem por meio de um “consenso” artificial, montado por uma minoria organizada que se apodera da realidade (ou narrativa, se preferir) e dá as cartas sobre a maioria desorganizada.

Ações como a de Stanford parecem resultado de ativismo e da tibieza de quem sabe muito o que cada palavra quer dizer, mas estremece – ou porque se convenceu da culpa perene por um passado que não é de nossa responsabilidade, ou porque é estúpido – diante da gritaria e manipulação de grupos de interesse.

Tudo seria menos grave se fosse apenas isso.

A deturpação do passado. A reescrita da história. O ranger de dentes do ativismo identitário. São sintomas de algo mais devastador.

As democracias estão se convencendo de que são ruins. Frente a isso, há uma normalização de autocracias que se apresentam como modelo ou alternativa. Países que atingiram níveis de desenvolvimento invejáveis gastam tempo, dinheiro e estabilidade defendendo bandeiras que não servem para manutenção de seu padrão de vida, sistema de governo e equilíbrio social.

A Casa Branca mandou suas embaixadas hastearem a bandeira da ONG Black Lives Matter nas suas embaixadas ao redor do mundo, enquanto seus adversários na América Latina, por exemplo, jogam e se aproveitam de valores caros para a maioria da população. Apenas para citar o exemplo russo. No Brasil, a propaganda do Kremlin avançou fácil entre petistas e bolsonaristas por saber explorar elementos em comum: a cultura.

Muito do caos é criado para isso. Desviar a atenção, drenar a energia e permitir o avanço de pautas e estratégias que não seguiriam em frente sem a confusão. Um dos princípios da guerra diz: “Vence aquele que conseguir fazer o Inimigo concentrar todo o seu esforço no ponto errado”.


Feliz Natal.


Gazeta do Povo