terça-feira, 20 de outubro de 2020

Letalidade menor da Covid-19 eleva dúvidas sobre confinamentos, diz epidemiologista

 BRUXELAS

Ainda há perguntas importantes sem resposta sobre a Covid-19, mas já avançamos o suficiente para evitar medidas de restrição social o máximo possível, afirma John Ioannidis, professor de epidemiologia na Universidade Stanford (EUA).

Ele acaba de publicar um trabalho em que calcula uma taxa de letalidade por infecção por coronavírus muito menor que os cerca de 4% previstos anteriormente. Na média, morrem 0,23% dos que contraem Sars-Cov-2, mostram os cálculos de Ioannidis, com grande variação em relação à idade: para os menores de 70 anos, a letalidade é de 0,05% dos que foram infectados.

Se o número potencial de mortes é menor, cresce o ceticismo sobre restrições drásticas, diz ele, “porque há menos a ganhar, comparado aos custos sociais, econômicos e de saúde dessas medidas”.

Especializado em epidemiologia de doenças infecciosas e referência global sobre como práticas, desenhos e métodos de pesquisa podem otimizar a qualidade, confiabilidade e a utilidade das informações científicas, ele tem dedicado boa parte de seu tempo a projetos sobre Covid-19.

“Era a combinação perfeita de interesses: um problema emergente importantíssimo, exigindo os melhores dados possíveis para responder a ele.”

Homem branco de meia idade e bigode usando terno e gravatas azuis sorri olhando a câmera
O médico americano John Ioannidis, professor de epidemiologia na Universidade Stanford (EUA) - Divulgação

De Atenas, onde está em visita a sua mãe, Ioannidis falou por telefone com a Folha sobre o que ainda falta pesquisar nessa pandemia e que lições ela deixa para o futuro.

Desde os primeiros meses da pandemia, o sr. alertou que decisões estavam sendo tomadas sem dados confiáveis. Governos poderiam ter agido de forma diferente?

Sem informação para avaliar a melhor opção, é preciso prever o cenário mais pessimista. Os dados que tínhamos sobre a China, e alguns da Itália, pareciam muito desanimadores. Víamos um vírus muito agressivo, se espalhando muito rapidamente e com uma taxa de fatalidade por infecção muito alta, porque víamos poucos assintomáticos.

Como o risco de morrer parecia na média muito alto, era justo tomar decisões draconianas, como lockdowns agressivos. Mas era também essencial levantar informações confiáveis rapidamente, porque confinamentos têm consequências tremendas para a saúde, a economia e a sociedade.

Para quais questões já temos respostas satisfatórias?

Temos uma boa noção de que esse é um vírus que se espalha rapidamente e infecta um segmento muito grande da população. E agora temos melhores dados sobre a fatalidade. Para as pessoas na média, a taxa de fatalidade por infecção é bem baixa comparada com o que se acreditava antes, 0,23%, com tremenda variabilidade.

A diferença de letalidade entre uma criança e alguém de 90 anos é da ordem de mil vezes. Sabemos que é um completo desastre se alguém fica infectado em um asilo. A letalidade pode chegar a 25%, um em cada quatro infectados morrem.

O que falta responder?

Ainda não sabemos qual a proporção de pessoas que precisam ser infectadas para que a pandemia ceda.

Vimos que a taxa de infecção pode chegar a 55% em favelas de Mumbai (Índia) e da Argentina e provavelmente em áreas densamente povoadas do Brasil. Isso chega bastante perto do cálculo teórico de 60% para a chamada imunidade de rebanho.

Em alguns lugares não densamente povoados, porém, a epidemia parece ceder em porcentagens muito menores. Na Suécia a prevalência não está nem perto de 60%, mas não houve recrudescimento forte nos casos, e modelos sugerem que a imunidade pode acontecer em porcentagens muito menores porque as pessoas não estão encontrando ninguém, não se misturam umas com as outras.

Uma questão em que já há dados, mas seria preciso aprofundar, é a de condições pré-existentes que afetem a imunidade, como a exposição a outros coronavírus. Há porcentagens diferentes de imunidade pré-existente em diversos países, e isso deve também contribuir para que não seja necessário um número tão alto para a imunidade coletiva. Mas ainda não temos certeza.

Outra fronteira é a das medidas de restrição: fechar locais de trabalho, fechar escolas, trabalhar de casa. Algumas são mais disruptivas que outras, e estão sendo usadas em diferentes combinações, sendo adotadas a partir de indicadores diferentes— número de casos, internações hospitalares, outros aspectos.

É uma prioridade avaliar as medidas-chave que estamos oferecendo como soluções.

A preocupação é com o impacto negativo dessas restrições?

Temos que ser honestos e dizer que não sabemos se elas podem fazer diferença numa direção positiva, pois essa pandemia provavelmente não terá sumido na próxima semana.

Não tenho motivo para testar medidas de higiene, lavar as mãos, evitar lugares congestionados, manter distância, usar máscaras se não puder ficar longe. Já sabemos que tudo isso funciona. Mas confinamentos, fechamento de escolas e de empresas, isso é algo que precisa ser muito mais bem estudado, comparado com o que sabemos hoje.

Sem dados, o que deveria ser levado em conta para tomar decisões?

A incerteza. Sabemos bastante, muito mais do que sabíamos quando a pandemia começou. E muito do que conhecemos hoje é mais otimista, comparado com o que achávamos que seria antes. Mas ainda é um problema sério. Precisamos admitir que não sabemos se é necessário fechar tudo, ou por quanto tempo, e fazer estudos para compreender se o saldo disso é positivo.

Já há pesquisas sobre o impacto das restrições?

Há alguns estudos. Na Noruega, não se notou diferença significativa, em termos de número de infectados entre reabrir academias de ginástica ou mantê-las fechadas. Escolas felizmente já abriram em muitos lugares, mas há pesquisas para entender como mantê-las abertas e evitar novos fechamentos.

Isso requer uma mentalidade diferente das pessoas. Em vez de ficar esperando que o governo ou os cientistas tenham resposta para tudo, deveríamos estar prontos para aceitar que isso é o que sabemos e isso é o que não sabemos e queremos saber. Para isso, é preciso testar.

Seu trabalho mostra uma letalidade por infecção menor que a estimada antes. Isso é mais um argumento contra as medidas drásticas?

Uma taxa de letalidade mais baixa é boa notícia, mas cria também mais ceticismo sobre restrições agressivas. Há menos a ganhar.

Não é preciso olhar também os números absolutos? Se a transmissão está muito acelerada, não pode haver muitas mortes, mesmo com taxa baixa de letalidade?

Sim, e esse número de quantas serão as pessoas infectadas até que a epidemia perca força é uma das informações sobre as quais ainda temos incerteza. Até que saibamos mais sobre isso, medidas não muito disruptivas são importantes.

Há outras variáveis. Não sabemos quando haverá uma vacina viável, mas o raciocínio sobre que medidas mudar será diferente se e quando ela estiver disponível. O mesmo acontece com melhores tratamentos para a Covid-19.

O que esta pandemia ensina a cientistas e tomadores de decisão?

A principal lição é que temos que estar preparados. Precisamos de mais investimento nos sistemas de saúde, principalmente na atenção básica, porque esta é uma doença que realmente pode ser tratada na atenção básica.

Testes também são importantes. Países que foram agressivos em testes logo cedo, como Taiwan, Singapura e Islândia, sufocaram a epidemia antes que ela se transformasse numa grande onda.

Não é possível fazer planos específicos, pois não sabemos quando ou se virá uma nova pandemia, que tipo de patógeno será, qual a letalidade, a capacidade de infecção, o risco. Mas, se tivermos o sistema de saúde preparado e também um plano para coletar logo no começo as informações que sabemos ser as mais importantes, essas sobre as quais falamos, podemos evitar erros.


RAIO-X

John Ioannidis, 55,

é professor de medicina, epidemiologia e estatística da Universidade Stanford e codiretor do Metrics (centro de inovação em pesquisa), da mesma instituição. Nascido em Nova York, cresceu na Grécia, fez graduação e doutorado em medicina na Universidade Nacional de Atenas e residência no hospital da faculdade de medicina da Universidade Harvard

Ana Estela de Sousa Pinto, Folha de São Paulo