Quem acompanhou de perto a Constituinte de 1987-1988 sabe que ela simbolizou um momento de ruptura, no qual a sociedade trocou um Estado capaz de exercer todo seu poder sem qualquer pudor ou escrúpulos de consciência, como sintetizou Jarbas Passarinho ao assinar o AI-5, por outro onde o Direito e a Liberdade prevalecessem sobre a força. O país inteiro se encontrou naquela Constituinte. A lufada de ar depois do sufoco.
Era comum a gente ver no Congresso todo tipo de gente a todo momento. Índios, favelados, ex-presos políticos, médicos, ecologistas, militares, educadores, malandros, otários, conservadores e progressistas, sem-terra e latifundiários, meninos ricos e meninos de rua, religiosos e ateus. O salão verde da Câmara fervilhava. Tinha fila na porta do gabinete de Mário Covas, líder do PMDB na Constituinte.
O doutor Ulysses Guimarães, então presidente da Câmara, da Constituinte e do PMDB, dizia que a sociedade muda 1º e assim faz com que mudem as leis, os costumes e a sua representação.
A Constituição de 1988 é a 7ª de uma lista que Paulo Bonavides e Paes de Andrade analisaram com extrema competência no livro História Constitucional do Brasil. Desde a Constituição do Império, de 1824, todas as Cartas traziam em si um componente de mudança e consolidação do establishment –até mesmo as de 1937 e 1967 escritas pelo mesmo Francisco Campos (1891-1968), o Chico Ciência, e empurradas goela abaixo da sociedade pela força das ditaduras.
Não há Constituição intocável num país que produziu 7 delas em pouco mais de 200 anos de vida civilizada e independência política. Portanto não há maluquice na proposta do líder do Governo Ricardo Barros de um plebiscito para que os brasileiros digam se querem uma nova Constituição ou não. Há, sim, uma convergência de interesses. Pergunte a qualquer empresário filiado à Fiesp e ele desfiará seus motivos para sonhar com uma Constituição mais enxuta e pragmática. Pergunte aos líderes sindicais e acontecerá o mesmo.
É fato que o assunto vem sendo discutido faz tempo, uns 20 anos pelo menos. Desde o dia em que o ex-presidente Lula acusou Fernando Henrique de rasgar Constituição e decretou que o Brasil precisava de uma Constituinte.
Luís Carlos Santos, ex-ministro da Articulação Política de Fernando Henrique e ex-deputado, sonhou com uma Constituinte. Em 2005, a maioria do PT apoiava uma Assembleia Nacional Constituinte e seu então líder, Simbá Machado, a defendeu apaixonadamente da tribuna. Dilma também quis. Tentou articular um plebiscito em 2013, mas Renan Calheiros e Henrique Eduardo Alves travaram. Haddad concorreu em 2018 com esta proposta no seu plano de governo. Hoje, dentro do MDB há muita gente doida por uma Constituinte, mas com vergonha de assumir.
O lobby para aposentar a Constituição de 1988 mobiliza brasileiros e estrangeiros. Em julho deste ano o professor de Yale Bruce Ackerman, casado com a ex-fada madrinha da Lava Jato Susan Rose-Ackerman, escreveu um artigo propondo uma Constituinte para 2023, argumentando que o brasileiro perdeu a fé no seu sistema político totalmente contaminado pela corrupção.
Bruce é um desses velhinhos norte-americanos simpáticos, cabelinho branco, oclinhos redondos, certo de que tem muito a ensinar sobre coisas que nunca aprendeu. Era dos maiores apoiadores da operação Lava Jato, mas quando percebeu que o time de Sérgio Moro e Deltan Dallagnol estava descendo a ladeira foi o 1º a assinar um manifesto condenando seus métodos e defendendo a liberdade para o ex-presidente Lula. Usa sua reputação de catedrático de uma grande universidade norte-americana para aspergir pó de pirlimpimpim e fazer brilhar ministros do Supremo e alguns causídicos deslumbrados com os quais andou protagonizando lives.
Ricardo Barros não botou a boca no trombone por acaso. Deputado experiente, líder e vice-líder de vários governos e um dos caciques do PP, fala em nome de uma parcela importante da sociedade. Argumenta que o Brasil precisa de uma Constituição capaz de equilibrar direitos e deveres. Mas este argumento não para de pé, porque isso já pode ser resolvido na atual Carta.
Boa parte dela não foi regulamentada, o país tem inúmeras prioridades e não pode parar 2 anos para viver em função de uma nova Constituição com toda a insegurança jurídica e guerra de poder que isso causa.
A nossa Carta atual com todos os seus direitos e garantias não foi suficiente para mudar a cara do Brasil, onde a maioria da população continua sendo pobre, analfabeta e vulnerável. Somos uma sociedade confrontada, dividida, governada pelo efeito manada das redes sociais. Temos um texto constitucional com boniteza, mas a precisão continua e muita.
E isso não aconteceu por causa do seu conteúdo, mas pela ineficiência dos que comandaram o Congresso desde a revisão constitucional de 1993. Há leis complementares que precisam ser votadas e questões que não podem mais ser empurradas para debaixo do tapete como a garantia da educação de qualidade para todos, estabilidade do funcionalismo público ou a reforma do Poder Judiciário. De acordo com a Câmara dos Deputados, 152 dispositivos necessitam ser regulamentados. É a maior prova que a Constituição de 1988 não caducou, para a frustração de gente como Mister Ackerman.
Trabalho para melhorar o que está aí não faltará. Vamos falar sério: emendada e remendada nos últimos 30 anos a atual Carta só ajudou a melhorar a vida de meia dúzia. A maioria continua com baixa escolaridade, baixa capacidade cognitiva e baixa renda. Basta olhar as condições de vida de quem mora na periferia das grandes cidades e nas favelas. Estas pessoas são a maioria dos eleitores que elegem presidente, governador, deputado, senador, prefeito.
Antes de convocar um plebiscito para mudar o que quer que seja, temos de forçar o debate público, trazer o eleitor e quem paga imposto para o centro desta discussão, porque ela interfere na nossa vida, no futuro. Continuamos pagando muito e recebendo muito pouco em troca. E isso não acontece somente porque se rouba muito, mas principalmente porque se administra muito mal.
Os verdadeiros conservadores são os que querem manter tudo como está e com os mesmos atores políticos de sempre. A pandemia mostrou a necessidade de soluções coletivas a uma sociedade embriagada de individualismo, capaz de achar normal que o Estado não garanta coisas simples a cidadão como o direito de ir e vir sem correr o risco de ser assaltado, morto, violado. O Brasil não precisa de Constituinte; precisa de menos guerrinhas de vaidades, menos individualismo e mais foco no coletivo e vontade de acertar naquilo que mudará para melhor a vida das pessoas.
Poder360