Entenda a tecnologia utilizada
pela Sinovac, os riscos que
envolvem a vacina chinesa e o
cenário real de produção
de imunizantes
Após oito meses da chegada do coronavírus ao país, o que mais se espera é a confirmação de uma vacina contra a covid-19 que seja eficaz e “devolva” a normalidade ao planeta.
O mundo amarga os efeitos da pior pandemia do século, e o Brasil registra 5,4 milhões de casos e mais de 158 mil mortos — ainda que as estatísticas não sejam definitivas sobre óbitos “de” ou “com” coronavírus, algo que pode ser um divisor de águas entre a política e a ciência no futuro.
Mas, curiosamente, no mesmo país de onde surgiu o vírus chegam informações para a solução de uma crise sanitária irremediável.
Depois de receber críticas internacionais por acobertar a pandemia no início do ano, a China saltou à frente na corrida para encontrar um imunizante em prazo olímpico.
As empresas farmacêuticas do país asiático têm quatro vacinas em fase final de testes, algo absolutamente discutível no meio científico, e nenhuma delas foi aprovada pelos órgãos reguladores e nem mesmo chineses.
O governador do Estado de São Paulo, João Doria (PSDB), apostou suas fichas na CoronaVac, vacina produzida pelo laboratório chinês Sinovac Biotech em parceria com o Instituto Butantan.
O relacionamento do governo paulista com o gigante farmacêutico teve início em agosto de 2019, depois de uma viagem até a China e da abertura de um escritório comercial de São Paulo em Xangai.
Durante a viagem, a equipe do Instituto Butantan, que fazia parte da comitiva, visitou a sede da Sinovac.
Porém, o governo de São Paulo e o centro de pesquisa negaram em nota conjunta ter estabelecido acordo com o laboratório lá em 2019.
Oficialmente, a parceria para a produção de vacinas contra o novo coronavírus entre o Butantan e a Sinovac foi firmada em 10 de junho deste ano.
Ao anunciar a sociedade, em coletiva de imprensa realizada no dia seguinte, o diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, justificou a escolha da CoronaVac em detrimento de outras vacinas — como, por exemplo, aquela em desenvolvimento pela AstraZeneca em parceria com a Universidade de Oxford, que inclusive estava em fase mais avançada que a chinesa à época.
Disse Covas:
“Essa parceria com a China já é de longa data. Foi fruto da visita que fizemos ao país. Fomos pessoalmente conhecer a Sinovac. A Sinovac é uma empresa privada e tem interesse no codesenvolvimento de outras vacinas com o Butantan”.
Covas explicou que as condições para o contrato eram as melhores do mercado, embora o documento permaneça sob sigilo.
(“É praxe, por envolver questões relacionadas ao desenvolvimento do produto”, diz ele.)
Outro ponto que pesou a favor da parceria com a China, segundo o diretor do instituto, foi o método empregado para a fabricação da CoronaVac, já dominado pelo Butantan.
“Estamos falando de uma tecnologia que é nosso dia a dia. O Butantan já produz vacinas com essa técnica.”
As candidatas a vacina anticovid-19
Atualmente, mais de 200 candidatas a vacina estão em desenvolvimento ao redor do mundo.
No entanto, algumas se encontram em estágio mais avançado do que outras. Dez laboratórios seguem na última etapa de testes, o chamado ensaio clínico de Fase III.
Nos Estados Unidos, quem comanda os estudos são as empresas Moderna, Novavax e Janssen [do grupo Johnson & Johnson]. Em uma parceria entre Estados Unidos e Alemanha, aparecem a Pfizer e a BioNTech.
No Reino Unido, o gigante AstraZeneca. Na China, além do Sinovac Biotech, estão o Instituto de Produtos Biológicos de Wuhan, o Sinopharm e o CanSino Biologics.
E, na Rússia, a pesquisa está sob o comando do Instituto de Pesquisa Gamaleya.
Destes, três receberam autorização para realizar ensaios no Brasil. São eles: AstraZeneca, Sinovac Biotech [chinesa] e Pfizer.
A vacina norte-americana do laboratório Janssen também foi liberada para estudos no país, mas a companhia informou a pausa dos ensaios clínicos em razão de efeitos adversos em um voluntário.
Não foi o único evento do tipo.
A AstraZeneca, que desenvolve a vacina em parceria com a Universidade de Oxford, também registrou reveses durante os testes clínicos e a pesquisa precisou ser paralisada, ainda que por curto período.
Uma vacina nada mais é do que um líquido injetado no corpo que mimetiza uma infecção e faz com que o organismo produza anticorpos contra determinada doença.
Parece simples, mas chegar à fórmula ideal exige um longo e meticuloso caminho.
Afinal, diferentemente de um remédio que é processado e expelido pelo organismo, os efeitos de uma vacina podem permanecer no corpo durante toda a vida.
O toxicologista e pediatra Anthony Wong explica que existem oito estratégias para a produção de um imunizante contra a covid-19.
Dentre elas estão as vacinas produzidas a partir de um vírus inativo, também chamado de morto, como é o caso da CoronaVac e de imunizantes contra raiva e gripe, ou de um vírus atenuado, como a usada na vacina para o sarampo.
Há também o método denominado de vetor viral, que faz uso de outro vírus, aparentado àquele ao qual se pretende combater, junto com proteínas.
É o exemplo da vacina da Oxford, que é uma versão enfraquecida e não replicante de um vírus do resfriado comum, o adenovírus de um chimpanzé, junto com proteínas do Sars-Cov-2.
Existem ainda outras técnicas, por meio das quais são injetadas no organismo frações de RNA e DNA do vírus. \
Essas tecnologias são consideradas inovadoras e não foram testadas em seres humanos até o momento.
As farmacêuticas Janssen e Moderna estão desenvolvendo imunizantes com esse método.
Para a médica hematologista Regina Kiyota, é importante que os laboratórios utilizem metodologias distintas no desenvolvimento de vacinas.
“É muito saudável, do ponto de vista de ciência, que tenhamos diferentes instituições promovendo vacinas por meios diferentes. Imagine se todo mundo usar uma metodologia única e depois se descobre que não deu certo”, pondera.
A médica diz não ser possível saber ainda qual método se mostrará mais eficaz no combate à covid-19:
“Isso vai se desenhar na linha do tempo, quais vacinas poderão ter sucesso maior e quais não”.
Em média, um imunizante leva de 10 a 15 anos para ficar pronto.
A vacina contra a caxumba foi a mais rápida do mercado até o momento e levou quatro anos. \
Antes de serem disponibilizadas em larga escala, todas as vacinas passam por um rigoroso processo de testes.
Na fase de pesquisa pré-clínica, a vacina é estudada em culturas de células e animais.
Após essa etapa, entra a fase clínica, para testes em seres humanos, que é dividida em I, II e III.
Não é exclusividade da CoronaVac.
Todas as vacinas que já estão no ensaio clínico da Fase III encurtaram etapas. \
Segundo Wong, só a fase pré-clínica dura, no mínimo, seis meses, mas pode chegar a um ano.
\“Todas as vacinas correram na fase pré-clínica.”
O exercício para entender a lógica do desenvolvimento de uma vacina do zero segue um raciocínio simples: imagine que você preparou um bolo de chocolate e precisa assá-lo.
A receita informa que são necessários 45 minutos em forno ligado a 180 graus para que seu bolo asse de forma homogênea, não fique cru por dentro nem queimado por fora.
Se você colocar cinco pessoas vigiando o forno, seu bolo assará mais rápido? E 20 pessoas? E 100 pessoas?
Pois é.
Além de vencer a etapa da segurança, é preciso calcular a taxa de eficácia.
Quanto tempo duram os anticorpos dessa vacina no organismo?
Para o médico especialista em Medicina de Emergência Alessandro Loyola, a pressa em acelerar etapas interfere diretamente nas conclusões acerca da eficácia do produto.
“Para saber se os anticorpos permanecem no corpo, por exemplo, um ano, preciso acompanhar o voluntário por um ano. Passou esse um ano?”
Por mais que diversos países juntem esforços para realizar testes simultâneos, o lapso temporal necessário para checar a duração de imunidade provocada por uma vacina não muda.
“Lamento o transtorno de ansiedade das pessoas, mas não é assim que a ciência funciona”, diz.
Confiabilidade e número de doses
Se outras vacinas tiveram percalços pelo caminho, pelo menos até onde se sabe a CoronaVac chega até aqui sem nenhum atropelo.
O que pode ser um problemão.
O médico neurocirurgião Paulo Porto de Melo lembra que grandes companhias que estão na corrida pelo desenvolvimento do produto, com histórico e tradição na produção de vacinas, enfrentaram dificuldades.
“A AstraZeneca, quando teve problemas com um voluntário, comunicou o fato aos órgãos responsáveis, paralisou os estudos. É uma postura que, por mais que assuste a comunidade leiga, passa tranquilidade para a comunidade médica. Mostra que a empresa está sendo responsável. Sobre a CoronaVac, ninguém sabe.”
Um caminhão de reticências põe em xeque a segurança e a eficácia do produto chinês.
Além do Brasil e da China, apenas a Turquia e a Indonésia apostaram no laboratório Sinovac. Inicialmente com a participação de 9 mil voluntários no país, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária liberou a ampliação da pesquisa para 13 mil pessoas.
Entretanto, mais de 4 mil voluntários ainda não iniciaram as aplicações.
O neurocirurgião Paulo Porto de Melo chama a atenção para outros detalhes: no Brasil, os voluntários que receberam a vacina chinesa têm idade entre 18 e 60 anos, são saudáveis, sem comorbidades e não foram infectados pelo vírus.
“Mas esse não é o grupo-alvo que interessa. São mais importantes idosos, jovens com doenças como obesidade, hipertensão, diabetes. Como falar em adquirir um produto que só se mostrou eficaz para um público que não é o mais vulnerável?”
A pesquisa testou a segurança da vacina em 50 mil voluntários na China, mas até o momento os dados não foram publicados em revistas científicas.
Para especialistas, a falta de transparência na divulgação dos resultados dificulta qualquer análise dos números por outros cientistas.
Além disso, não há notícia de que alguma autoridade científica da comunidade internacional tenha respaldado os estudos da Sinovac.
Segundo o governo paulista, 35% das pessoas apresentaram reações adversas leves após a aplicação da CoronaVac, como dor no local da aplicação ou dor de cabeça.
Nos testes realizados na China, o grau de efeitos adversos ficou em torno de 5,37%.
O médico Anthony Wong afirma que esse número é alto e inaceitável:
“Em comparação com a vacina contra tétano ou mesmo poliomielite ou sarampo, a incidência de efeito adverso é de 0,05% a 0,5%”.
Além disso, Wong explica que a tecnologia do vírus inativo utilizada na produção da vacina chinesa requer três ou até quatro doses para produzir efeito.
Para prevenir a poliomielite, por exemplo, são necessárias três aplicações e mais um reforço.
Entretanto, só estão previstas duas doses da CoronaVac. Segundo Wong, isso tem relação com o encurtamento das etapas de estudo da vacina chinesa.
“Eles não completaram a Fase II. Então, não sabem se será necessária ou não uma terceira dose. E garanto que precisa. Não existe uma única vacina de vírus inativo que não exija três doses. A única explicação para oferecer apenas duas doses é a pressa.”
Por mais que os órgãos regulatórios desfrutem de credibilidade, a Anvisa informou que poderá liberar um imunizante que atinja 50% de eficácia mínima, mesmo que o padrão aceitável seja acima de 70%.
“Para considerar uma imunização eficaz da população, não se aceitam números inferiores a 90%”, rebate Wong.
Nessa disputa feroz para ver quem assume primeiro a paternidade de uma vacina, empresas farmacêuticas estão forçando países a firmar acordos de isenção de responsabilidade sobre potenciais efeitos adversos.
Foi o que fez a AstraZeneca — o laboratório não responderá por quaisquer danos que apareçam meses, anos ou décadas depois.
Até mesmo a indústria parece reconhecer que o tempo é insuficiente para garantir a qualidade, uma vez que os efeitos colaterais não são necessariamente imediatos.
Disputa política e STF
A despeito de tantas interrogações, o fato é que em setembro o governador João Doria assinou um termo de compromisso no valor de US$ 90 milhões com a Sinovac para o fornecimento de 46 milhões de doses do produto.
Doria também formalizou a transferência de tecnologia para produção da vacina pelo Butantan.
O governador chegou a dizer que a vacinação contra a covid-19 será iniciada em dezembro deste ano, prazo considerado irreal para muitos especialistas.
A chegada à reta final da CoronaVac azedou ainda mais a relação entre João Doria e o presidente da República, Jair Bolsonaro.
Como no caso da cloroquina, a discussão escanteou a ciência e virou guerra política.
Na terça-feira 20, depois de o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, informar que compraria 46 milhões de doses da vacina chinesa ao custo de R$ 1,9 bilhão, o Ministério da Saúde recuou e negou a intenção.
“Não há razão para exigir que o governo pague por algo que ainda está em desenvolvimento.
Normalmente, o ônus da produção é da indústria que está desenvolvendo o produto.
Não é hora de entrar em todas as etapas”, defendeu a médica oncologista Nise Yamaguchi.
Nise faz uma ressalva quanto à compra, por parte do governo, de 100 milhões de doses da vacina da Oxford:
“Houve participação no desenvolvimento”.
Para complicar o estresse político, entrou na pauta a discussão sobre a obrigatoriedade de vacinação, numa espécie de Revolta da Vacina Parte II, quase 120 anos depois do maior motim da História do Rio de Janeiro.
Doria defende a ideia de tornar a vacina anticovid obrigatória. \
E Bolsonaro afirmou que não vai obrigar o brasileiro a se vacinar.
Até mesmo a Organização Mundial da Saúde, que pecou em tantas recomendações durante a pandemia, é contra a compulsoriedade da vacina.
Já que não há nada ruim que não possa piorar, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve entrar no circuito em breve para tomar a decisão final sobre esse tema de saúde pública.
Caso o STF inclua a CoronaVac no Programa Nacional de Imunização, a vacina chinesa será distribuída por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) e o custo ficaria com a União.
Não há garantia de que surgirá um imunizante perfeito
Entre tantas candidatas, é possível que uma vacina em algum momento se mostre efetiva para frear o número de contágios.
Mesmo assim, os primeiros imunizantes que ficarão prontos provavelmente não serão os melhores.
Por enquanto, não há ainda no mundo inteiro uma vacina segura e eficaz contra a covid-19 comprovada cientificamente.
É preciso encarar o fato de que o novo coronavírus veio para ficar.
A falsa esperança de que haverá vacina até o final deste ano pode suscitar desconfiança na população, que já está de orelha em pé ao acompanhar as discussões sobre uma solução que nem sequer existe.
Ainda que surja um imunizante, um dos principais desafios será organizar a produção em larga escala.
Estamos falando de bilhões de doses.
E mais, além de produzir, será preciso criar uma logística de entrega e armazenamento refrigerado para não quebrar a cadeia de frio.
Algumas vacinas requerem uma cadeia ultrafria com temperaturas próximas a 70 graus negativos.
Outra realidade para a qual não podemos fechar os olhos é que o desenvolvimento de vacinas nem sempre compensa.
A humanidade convive com doenças causadas por vírus como a aids e a dengue em que, não importa quanto você pesquise, não se consegue encontrar uma maneira de desenvolver uma vacina eficaz.
Na gripe suína, a vacina gerou reações piores do que a própria doença.
Ninguém garante que haverá um imunizante perfeito para erradicar de vez o coronavírus.
Entretanto, não há dúvida de que as vacinas são um dos grandes avanços da humanidade e a melhor forma de prevenir e reduzir doenças infecciosas.
A Organização Mundial da Saúde estima que vacinas evitem de 2 milhões a 3 milhões de mortes por ano.
A Europa enfrenta hoje uma segunda onda de contaminação mas, embora o número de casos da covid-19 tenha aumentado, as mortes diminuíram.
Já no Brasil há uma desaceleração tanto no número de casos quanto de óbitos.
Estudo recente publicado neste mês de outubro por um dos principais especialistas em epidemiologia e em medicina baseada em evidências, o professor de Stanford John Ioannidis, registra que, na média, morre 0,23% dos que contraem a covid-19, com grande variação em relação à idade: para os que têm menos de 70 anos, a letalidade é de 0,05% dos infectados.
São números comparáveis às taxas de letalidade da gripe sazonal e da pneumonia: 0,13% e 0,2%, respectivamente, em países de alta renda.
O que leva alguns especialistas a questionar: vale a pena realizar a vacinação em massa contra uma doença com índices de morte como esses?
Além da baixa letalidade, a redução no número de mortes está diretamente ligada ao fato de que os médicos aprenderam a tratar a doença.
Para o clínico geral e doutor em imunologia Roberto Zeballos, o primeiro médico do país a recomendar o uso de corticoide no tratamento — procedimento que meses depois foi alardeado no mundo —, não há como desenvolver uma vacina segura em tão pouco tempo.
“A urgência das vacinas é para suprir a ansiedade dos leigos por uma solução.”
Segundo Zeballos, já está em curso uma estratégia formatada para tratar a covid-19 e não faz sentido vacinar a população em massa.
Diz ele:
“É mais fácil ter estratégias de tratamento do que sair vacinando todo mundo. Essa epidemia está mostrando que existe começo, meio e fim”.
Sim, existe fim.
Revista Oeste