quinta-feira, 29 de outubro de 2020

"O pai, o filho e o deboche", por J.R. Guzzo


Napoleão Nunes Maia, ministro do Superior Tribunal de Justiça

De safadeza em safadeza, e com a regularidade das marés, a aglomeração de vossas excelências e outros peixes graúdos que ocupa os galhos mais altos das nossas “instituições” está varrendo da vida pública brasileira os últimos átomos de constrangimento, na hora de fazer o mal, que ainda possam resistir aqui e ali nessas cumieiras. 

A ideia geral de que não se deve praticar certas coisas em público, porque “pega mal”, parece caminhar rapidamente para a extinção; daqui a pouco vai ficar mais fácil achar um mico-leão-dourado. 

O que está valendo é o exato contrário. 

Existe uma opção entre o certo e o errado, nesse ou naquele assunto? 

Então vamos fazer o que está errado.

Acaba de acontecer, mais uma vez, com a decisão da Câmara dos Deputados de nomear o filho do ministro Napoleão Nunes Maia, proprietário de uma cadeira no Superior Tribunal de Justiça, para o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). 

Pode parecer uma piada, e é uma piada — mas foi precisamente isso o que houve, porque nesse bioma a regra em vigor é “cada um cuida de si, e todos cuidam de todos”. 

E se aplicação da regra requerer que se cometa um deboche? 

Paciência; que venha o deboche, então, e depois a gente se arruma. 

Nem se perdeu tempo, nesse caso, com a nomeação de algum concunhado do ministro Napoleão, ou o primo em terceiro grau, ou a sobrinha do colega que despacha na sala ao lado — foi o filho mesmo, direto.

É um desses casos em que o insulto se soma à injúria: como essa gente tem a coragem de nomear o filho de um ministro para o Conselho que está encarregado de julgar o comportamento do pai? 

Ninguém fica com vergonha — o pai, o filho e os 364 deputados que montaram e aprovaram essa tramoia? 

Ninguém, obviamente, tanto que o rapaz — cujas credenciais de jurista são iguais a três vezes zero — foi para o CNJ, numa operação conjunta do Centrão (cujo presidente discursou em plenário a favor do seu preferido) e do PT. Qual a surpresa? 

Em coisas assim (“fundo eleitoral” etc.) Centrão e PT estão sempre juntos. 

Na verdade, essa modalidade de trapaça é a preferida por nove entre dez magnatas da nossa vida pública: ninguém sabe direito o que é “CNJ”, nem se importa em saber — ou seja, é o lugar ideal para uma vigarice. 

Depois de uns ruídos na hora da escolha, o assunto cai em exercício findo e todos os interessados ficam em paz. Por que iriam se preocupar com alguma coisa?

A nomeação não poderia vir numa hora melhor para o ministro Napoleão. 


Daqui a dois meses ele será obrigado a se aposentar do STJ — e a partir daí poderá ser acusado de corrupção pela Lava Jato. 


Nessas horas, nada como um filho no Conselho Nacional de Justiça. 


O respeito intransigente às “instituições” vai salvar o couro de todo mundo.


 Publicado no jornal ‘O Estado de S. Paulo’, em 28 de outubro de 2020


Revista Oeste