sexta-feira, 7 de agosto de 2020

"Para onde vai o jornalismo", por Selma Santa Cruz

Em tempos de pós-verdade, os fatos perdem espaço para versões e opiniões


Até algum tempo, quem abria um jornal ou se conectava a noticiários na TV ou no rádio partia do pressuposto de que teria acesso a fatos. E durante a segunda metade do século passado realmente o jornalismo se guiou, ao menos na teoria, pelo princípio da objetividade na captura e no relato da realidade. Isso implicava, como ensinado nas novas faculdades que surgiram no período para profissionalizar o ofício, a necessidade de contextualizar os acontecimentos, oferecendo ao leitor diferentes perspectivas antes de alinhavar uma conclusão lógica — a fim de que ele pudesse formar, com embasamento, a própria opinião. E embora sempre se tenha reconhecido que a isenção nunca pode ser absoluta — já que todo observador filtra a realidade a partir de sua ótica e repertório — a primazia dos acontecimentos sobre pontos de vista subjetivos consolidou-se como valor consensual. 

Ou seja, na grande imprensa, opiniões deveriam ficar reservadas às páginas a elas dedicadas e identificadas como tal. A exceção seriam as publicações que adotam um posicionamento político ou ideológico declarado, como é o caso da Revista Oeste e de inúmeras outras publicações mundo afora, territórios assumidos do jornalismo opinativo.

Tudo indica, porém, que esse ciclo terminou. Como se pode constatar diariamente, está cada vez mais difícil encontrar na grande mídia, supostamente imparcial, conteúdos que não sejam apresentados de forma distorcida e politicamente enviesada. Curiosamente, porém, a despeito de todo o clamor contra as chamadas fake news nas redes sociais, a complacência é generalizada quando se trata de inverdades ou manipulações propagadas pelos meios jornalísticos. 

Talvez porque jornalistas tendam a se considerar acima do bem e do mal. Julgam-se defensores autonomeados da opinião pública — embora a maioria das pesquisas indique que a credibilidade e o prestígio da imprensa estão em queda livre há algum tempo.

Outra razão provável para que essa distorção esteja sendo ignorada é que qualquer crítica, hoje em dia, à forma como alguns jornalistas atuam tende a ser qualificada como um ataque antidemocrático à imprensa como instituição. 

Tornou-se corriqueiro, no Brasil, confundir as instituições com as pessoas que as representam. Por isso, quem aponta malfeitos dos ministros do Supremo Tribunal Federal ou de membros do Legislativo é tratado como se estivesse atentando contra as instituições em si — e corre o risco de linchamento virtual ou de entrar na mira dos inquéritos sigilosos do STF.

O fato de a receita publicitária ter se tornado o sustento da mídia reforçou a busca pela neutralidade


Enquanto isso, o descompasso entre o que acontece de fato no Brasil e a cobertura da grande mídia tornou-se tão frequente que se tem a sensação, muitas vezes, de que se trata de dois países. Especialmente ilustrativo dessa disparidade é o Jornal Nacional, da Rede Globo — e os memes que circulam nas redes sociais indicam que as pessoas já não se deixam enganar com a mesma facilidade dos tempos em que não tinham alternativa para se informar. 

Como ocorreu, notoriamente, durante o movimento Diretas Já, que a emissora ignorou enquanto pôde, atitude que deu origem ao refrão “O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”. 

O qual voltou à tona, por sinal, mais recentemente, quando os milhares de brasileiros que tomaram as ruas para protestar contra a impunidade e a corrupção descobriram que, a acreditar no noticiário do horário nobre ou nas primeiras páginas dos jornais, as manifestações simplesmente não existiram — ou tiveram proporção infinitamente menor do que a constatada no local pelos participantes.

As tentativas de fazer desaparecer os fatos suprimindo-os do noticiário é recorrente também, como se sabe, em casos de denúncia de corrupção contra personagens do Judiciário e do Legislativo influentes no meio jornalístico. 

E, como a grande imprensa nacional pauta a internacional, a distorção se reproduz na maior parte dos veículos estrangeiros — acompanhar o que tem sido publicado sobre o Brasil em veículos como o norte-americano The New York Times, o inglês The Guardian, o espanhol El País e o francês Le Monde, entre outros, chega a ser aflitivo, tão evidente fica a parcialidade ideológica e o descompromisso com a verdade dos fatos.

Não é de hoje, convenhamos, que a imprensa mente. “Eu não preciso ler jornais, mentir sozinho eu sou capaz”, já cantava, nos anos 1980, o roqueiro-filósofo Raul Seixas, em seu Cowboy Fora da Lei

Vale lembrar também que a tradição do jornalismo panfletário, porta-voz desinibido de interesses comerciais e políticos, atravessa os séculos e era dominante até meados do século passado — no Brasil, por exemplo, Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados, permanece como símbolo da imprensa como balcão de negócios. 

A partir dos anos 1950, contudo, o papel central das agências de notícias internacionais valorizou a busca da imparcialidade, já que elas forneciam conteúdos para jornais de diferentes países e linhas editoriais. O fato de a receita publicitária ter se tornado o sustento da mídia de massa também reforçou a busca pela neutralidade, dada a necessidade de não alienar anunciantes partidários de qualquer posição.

“Trabalhar como jornalista de centro não deveria ser um ato de bravura”


Ultimamente, contudo, esse paradigma está caindo por terra. Claramente alinhada com a agenda dita “progressista”, a grande imprensa parece ter abraçado o princípio de que os fins justificam os meiosPoderia tratar-se de uma tendência conjuntural, resultado da radicalização política, tendo em vista que a quase totalidade dos veículos continua a proclamar oficialmente sua imparcialidade. 

Mas uma série de episódios recentes sugere que a mudança veio para ficar. Em junho, causou espanto a demissão sumária do editor de opinião do The New York Times, James Bennet, por ter publicado o artigo de um senador norte-americano que defendia a repressão de protestos violentos. Estaria o NYT censurando até mesmo um senador da República?

Essa percepção se consolidou pouco depois, quando outra editora do jornal, Bary Weiss, divulgou sua carta de demissão, alegando ser vítima de bullying por não comungar da opção ideológica da redação. “Existe um novo consenso na imprensa”, denunciou. 

“O de que a verdade não é um processo de descoberta coletiva, mas uma ortodoxia já definida por uma minoria que considera sua missão informar todos os outros.” 

Weiss, que fora contratada justamente para contribuir com uma visão mais balanceada para a página de opinião, justificou assim sua desistência: “Trabalhar como jornalista de centro num jornal norte-americano não deveria ter de ser um ato de bravura”.

No Brasil, como se sabe, jornalistas independentes ou conservadores, como Luís Ernesto Lacombe, entre outros, também têm sido demitidos por não se adequarem à linha editorial hegemônica de esquerda. Mas o problema não suscita por aqui nenhum debate, ao contrário do que vem ocorrendo nos meios especializados na Europa e nos Estados Unidos, em que especialistas já elaboram, inclusive, teorias para justificar o novo paradigma. 

“Será que a era da imprensa imparcial terminou?”, questionou semanas atrás um dos editores da revista britânica The Economist. Para uma nova geração nas redações, a resposta não deixa dúvida. 

“Essa ideia do jornalismo imparcial, obcecado pela objetividade e pela apresentação dos dois lados, é um experimento fracassado”, defende Wesley Lowery, da cadeia de televisão ABC, vencedor de um prêmio Pulitzer, o mais prestigiado da profissão.

Na mesma perspectiva, o diretor da renomada Columbia School of Journalism, Steve Coll, qualificou a objetividade, em texto dirigido aos alunos, como “uma velha norma antiquada”. 

E a revista da escola, a Columbia Journalism Review, avançou o debate em sua última edição com uma matéria que inquire “O que virá depois que nos livrarmos da objetividade no jornalismo?”.

Jornalistas que acreditam na legitimidade de “editar os fatos” em favor de uma “causa justa”


O argumento de fundo dos que defendem esse novo entendimento é que “a clareza moral” deveria se sobrepor ao relato dos fatos. Ou seja, como autodenominados árbitros da verdade, os jornalistas teriam não só o direito, como também o dever, de “editar” os fatos quando se trata de defender “a causa justa” e “o lado certo” da História. 

Mas não caberia ao leitor decidir que lado é este? Na essência, essa nova visão embute, sobretudo, a perigosa ideia de que a verdade seria relativa, um conceito elástico, que pode ser moldado à vontade, conforme os interesses políticos de cada jornalista.

É claro que jornalistas e veículos, como todo mundo aliás, têm direito às próprias opiniões — embora certamente não, como se costuma lembrar, “aos próprios fatos”. 

O que cabe discutir é até que ponto é legítimo direcionar a cobertura do noticiário segundo determinada linha partidária ou ideológica enquanto se mantém, oficialmente, uma suposta isenção. Ou seja, sem combinar o jogo com quem vai receber a informação. Sobre essa questão, vale revisitar a história dos jornalistas Walter Duranty e Gareth Jones, envolvidos com a cobertura política na União Soviética durante o começo da década de 1930, o período mais violento dos expurgos e assassinatos em massa de opositores políticos promovidos pelo ditador Josef Stalin.

Trabalhando como freelancer, o galês Gareth Jones pôs a vida em risco para investigar e revelar ao mundo o genocídio de milhões de ucranianos condenados à fome pelo confisco de grãos ordenado por Stalin. 

Já Walter Duranty, correspondente do The New York Times em Moscou na mesma época, que acreditava na falsa promessa igualitária do comunismo, achou que valia a pena esconder os crimes do regime “em nome da causa”.

Como retratado no filme Mr. Jones, da diretora polonesa Agnieszka Holland, que entrou dias atrás no catálogo da Netflix, o NYT vendeu a seus leitores a versão mentirosa de Duranty, baseada na propaganda oficial soviética — que lhe valeu, note-se o despropósito, um prêmio Pulitzer. 

O jornal só viria a admitir seu erro quarenta anos depois, na década de 1990, mas a comissão do Pulitzer, por sua vez, se recusa até hoje a rever a infame premiação. Jones terminou assassinado pouco tempo depois, supostamente por agentes soviéticos. Mas a verdade pela qual deu a vida acabaria finalmente vindo à tona e hoje é parte da história — o genocídio conhecido como Holodomor. 

Uma verdade fartamente documentada e que não comporta ambiguidades. O que comprova que, como comenta no final do filme a personagem da jornalista alemã Ada Brooks, que acreditava como Duranty na utopia comunista, mas apoiou a investigação de Jones: “Existe, de fato, só uma verdade”.


Selma Santa Cruz foi editora e correspondente internacional do jornal O Estado de S. Paulo e da  revista Veja, na França e nos Estados Unidos, antes de se dedicar à comunicação corporativa como sócia-diretora da TV1, grupo de agências especializadas em marketing digital, conteúdo, live marketing e relações públicas. É mestre em comunicação pela USP e estudante permanente da História.