sexta-feira, 7 de agosto de 2020

"O STF, a imprensa e a liberdade de expressão", por Bruno Garschagen

Dos papistas do século 17 aos bolsonaristas do século 21 e de como Alexandre de Moraes agiu de forma arbitrária e arrastou consigo toda a Suprema Corte


Das muitas profecias feitas por Alexis de Tocqueville em sua obra A Democracia na América (Vide Editorial, 2019), a mais evidente foi a centralização do poder estatal como corolário da experiência “dos séculos democráticos”, da vitória da ideia da igualdade que conduz “a um governo único, uniforme e forte”, da ambição dos homens que almejam controlar os indivíduos, da ilusão dos povos que os leva a abrir mão de suas liberdades. Não se trata, portanto, de exclusividade de um dos três poderes, mas do caráter dos homens que ocupam posições relevantes no Executivo, no Legislativo e no Judiciário e que podem destruir as liberdades.

A liberdade de expressão simboliza uma espécie que congrega uma dimensão política e outra individual. Individual porque só o indivíduo é capaz de exercê-la; política porque, protegida pela lei, sua cassação é empreendida politicamente, afeta toda a sociedade e não somente aquele que foi calado.

Quem faz da liberdade de expressão um instrumento do vício deve ser responsabilizado pelo crime cometido, não há dúvida a esse respeito. Nenhuma liberdade é absoluta porque está sempre condicionada aos efeitos de seu exercício sobre um terceiro. O que não pode acontecer é o governante, o legislador ou o magistrado atacar a liberdade de expressão do “criminoso presumível” por um delito que nem sequer foi cometido.

O ofício de censor é atividade de homens mesquinhos


No seu famoso Areopagítica, livro muito citado e louvado quando o assunto é liberdade de expressão, John Milton acusou a censura prévia de ser o resultado da sensação de superioridade dos agentes do Estado e seu consequente desapreço pelos indivíduos livres. E que tal ofício, o de censor, era atividade de homens mesquinhos. Elaborados como reação aos acontecimentos históricos da Inglaterra no século 17, os argumentos de Milton são cristalinos, sofisticados e atemporais. Cabem à perfeição às discussões deste século 21, mesmo numa cultura política tão distinta quanto a nossa.

O poeta inglês não fez, porém, a defesa da liberdade de expressão para todos, mas apenas para seus irmãos de fé protestante e de causa revolucionária. Os católicos foram explicitamente excluídos como beneficiários de seu protesto e, segundo Milton, o papismo não deveria ser tolerado.

Essa posição seletiva, que define quem pode e quem não pode ter ou exercer o direito à liberdade de expressão, é triste realidade em vários países. Embora restrito à atividade jornalística, o principal índice internacional é a Classificação da Liberdade de Imprensa 2020, elaborada pelos Repórteres sem Fronteiras. O levantamento atribui notas a partir da análise do que ocorre em cada país em relação a PluralismoIndependência midiáticaAmbiente e autocensuraQuadro legislativoTransparênciaInfraestruturaAgressões.

Numa lista de 180 países, o mais livre é a Noruega e o menos livre é a Coreia do Norte. O Brasil ocupa a nada honrosa posição de número 107. Estamos atrás de Angola, Moçambique, Serra Leoa, Kosovo. Desde que o índice começou a ser publicado, em 2013, a posição do Brasil nunca foi boa.

Uma perversão completa da lei e da ética


Na área do site dedicada ao Brasil, há uma nota cujo título é autoexplicativo acerca da postura política da instituição: “Um clima de ódio e desconfiança alimentado pelo presidente Bolsonaro”. Estou muito curioso para saber de que maneira a organização Repórteres sem Fronteiras qualificará no próximo índice a censura prévia estabelecida pelo ministro do STF Alexandre de Moraes e a declaração  “Enquanto Judiciário, enquanto Suprema Corte, nós somos editores de um país inteiro”, do ministro Dias Toffoli.

Pertencem à mesma cepa autoritária decisões políticas e judiciais que cassam a liberdade de alguns que não foram condenados por crime algum. É uma perversão completa da lei e da ética. Tão mais grave que tal excrescência seja perpetrada por ministro do STF, como o fez Alexandre de Moraes, numa clara afronta à Constituição da qual deveria ser guardião.

Assim como John Milton não queria a liberdade de expressão para os católicos, o ministro não quer que a tenham os bolsonaristas mais notórios. Ao censurar apoiadores do governo e as redes sociais nas quais eles tinham contas ativas, Moraes agiu de forma arbitrária e arrastou a instituição consigo. Em nenhuma hipótese, o STF pode ser censurador, como quer Moraes, nem editor dos brasileiros, como quer Dias Toffoli.

O Judiciário é o poder mais perigoso porque tem o potencial mais danoso


Uma vez aberto o precedente, abre as portas do inferno para queimar qualquer um que seja visto por ministro do STF como seu inimigo. Caso a decisão do ministro seja endossada pela maioria de seus colegas, o mesmo entendimento abusivo poderá ser usado contra qualquer um a qualquer tempo. A situação é ainda mais inacreditável quando ao golpe contra a liberdade de expressão são adicionados um ataque contra empresas privadas e a pretensão de que uma decisão nacional seja acatada internacionalmente.

O Judiciário é o poder mais perigoso porque tem o potencial mais danoso, impõe a maior dificuldade de correção e os demais poderes quase nada podem fazer para confrontá-lo. Se Executivo e Legislativo podem ser modificados de tempos em tempos por meio de eleições (e ressalto que o presidencialismo é o pior modelo para a solução de crises), a renovação do Judiciário é processo lento que depende de aposentadoria, morte ou renúncia de seus integrantes. E se é verdade que um ministro do STF pode sofrer processo de impeachment, imposto pelo Senado Federal, caso cometa crimes de responsabilidade (Lei nº 1.079, de 1950), até hoje nenhum ministro foi afastado do cargo com base nessa lei.

A imprensa, que exibe soberba similar à do ministro censurador, apequenou-se


A afirmação está longe de ser original, mas deve ser sempre lembrada: a defesa da liberdade de expressão só é válida se for defendida também para as ideias que rejeitamos. Reitero: se houver crime, que seu autor seja processado, julgado e condenado. Mas, se a própria imprensa, por rechaçar os censurados, endossa a censura prévia estabelecida pelo STF, estamos diante de um caso gravíssimo de duplo padrão moral: jornalistas que reclamam, com razão, dos ataques à liberdade de expressão, mas aceitam tais violações quando a vítima é um adversário.

Não se enganem: a cassação da liberdade de um indivíduo ou de vários indivíduos abre a janela para a cassação de outras liberdades de todo mundo, mesmo daqueles que celebraram quando só o inimigo foi atingido.

A imprensa, que exibe soberba similar à do ministro censurador, apequenou-se para atacar seus inimigos declarados. Contra um presidente nostálgico do regime militar e de postura similar à de Floriano Peixoto, o déspota militar que foi o segundo presidente republicano, os jornalistas endossam as posições arbitrárias do STF, do Legislativo e dos adversários do governo sob a justificativa de combater o autoritarismo de Bolsonaro e de seus apoiadores. Não se trata, portanto, da luta do bem contra o mal.

Vivemos um momento político delicado no qual líderes e integrantes dos Poderes Judiciário, Executivo, Legislativo e da imprensa estão numa disputa acirrada para, em graus e temas distintos, mostrar quem se sai pior, quem sai menor. Nosso desafio é impedir que esse conflito prejudique o país. Como? Assumindo a responsabilidade que nos cabe e usando os instrumentos políticos e jurídicos disponíveis. É difícil, mas não impossível.



Bruno Garschagen é cientista políticomestre e doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa) e autor dos best-sellers Pare de Acreditar no Governo e Direitos Máximos, Deveres Mínimos (Editora Record).


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