sexta-feira, 7 de agosto de 2020

"No futebol, a liberdade entra em campos", por Dagomir Marquezi

O futebol brasileiro chegou a 2020 com o mesmo rígido esquema do fim do século passado. Mas esse monolito começou a rachar com o streaming e aplicativos


A vida de João Torcedor não tem sido fácil. Fanático pelo seu time, logo que acorda procura no jornal ou na internet se vai passar o jogo do dia, um clássico imperdível. Se tiver transmissão pela Rede Globo, João cai de joelhos e agradece aos céus.

Mas geralmente a Globo não transmite. Pode ser que o jogo passe na SporTV. Se não passar, existe uma última esperança, que é comprar uma transmissão avulsa no canal Premiere FC. Na página do canal na internet não existe nenhuma informação a respeito. João entra no chat da empresa, e a atendente não sabe dizer o preço e nem mesmo se ainda presta esse tipo de serviço. (A transmissão avulsa da Premiere virou uma espécie de lenda e dizem que seu preço estaria ao redor de R$ 100.)

Mesmo que o João Torcedor decida assistir ao jogo no estádio, terá sua vida atrapalhada pelo atual estado de coisas. Quando a Rede Globo transmite o jogo (para outras cidades), não admite que sua grade de programação seja alterada. O jogo noturno, que poderia começar umas 20 horas, tem de esperar até o fim da última novela e só tem início às 21h30. Vai terminar, no mínimo, às 23h30. Se tiver prorrogação, disputa de pênaltis etc., pode se arrastar pela madrugada. Terminado o jogo, João tem de se arriscar pela cidade no início da madrugada para acordar cedo no dia seguinte.

O problema da transmissão de futebol no Brasil é o mesmo de tantos outros setores — a falta de concorrência. Na prática, a Globo manda no mercado desde 1992. Hoje controla o Campeonato Brasileiro Série A, detendo os direitos para transmissão por TV aberta, por assinatura, pay-per-view e streaming. (A TNT/Turner tem presença marginal.)

O modelo da NBA privilegia o cliente, não uma emissora que quer evitar concorrência


O caso do canal por assinatura Premiere é bom exemplo desse domínio. O torcedor pode fazer a assinatura mensal por R$ 79,90 ou comprar o plano anual, que custa R$ 718, divididos em 12 prestações. Nos dois casos, terá acesso a todos os jogos. Se torce para o Vasco, vai ter Bahia X Coritiba. Se torce para o Fortaleza, vai ter Athletico-PR X Goiás.

Só para efeito de comparação, veja o que a NBA, a principal liga de basquete do mundo, oferece aos torcedores, inclusive os do Brasil. O League Pass (que inclui todos os 1.230 jogos do campeonato) começa em mais de R$ 300, mas o preço vai caindo conforme o torneio avança (agora está em R$ 80). Um jogo avulso tem preço de cafezinho — R$ 4. A assinatura mensal custa R$ 42. Mas há muitas outras opções, não acessíveis aos brasileiros, que poderiam servir de exemplo para o nosso futebol. Você pode assinar só os jogos do seu time. Ou pagar por todos os jogos de um único dia. As transmissões são via internet. Elas estão sempre ao seu alcance por streaming, não importa se forem transmitidas pela TV.

Enquanto isso, o futebol brasileiro chegou a 2020 com o mesmo rígido esquema do fim do século passado. Mas esse monolito começou a rachar. Dois fatores estão mudando as regras do jogo.

A MP 984 é apontada como uma das razões pelas quais a Globo se transformou numa máquina de guerra contra o governo

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O primeiro é a Medida Provisória nº 984/20, editada pelo governo Jair Bolsonaro. A Lei Pelé determinava que o direito de transmissão deve ser definido pelos dois times em jogo. A MP 984 diz que esse direito é apenas do time mandante — como acontece com as principais ligas da Europa, entre elas a inglesa, a espanhola, a italiana e a francesa. Quando um só time decide quem vai transmitir, as coisas ficam muito mais fáceis.

O clube que realizou o maior ato de rebeldia contra a atual situação foi justamente o que mais ganhou dinheiro com a TV no ano passado (R$ 330 milhões), o Flamengo. O rubro-negro quebrou o longo jejum de futebol causado pela pandemia com um jogo contra o Boavista pelo Campeonato Carioca. Já com a perspectiva da nova medida provisória, o clube dispensou os R$ 18 milhões oferecidos pela Globo e transmitiu o jogo pelo seu canal no YouTube (em que chegou a 11,6 milhões de visualizações), além de Facebook, Twitter e MyCujoo. O Flamengo abriu um precedente de amplas possibilidades. E ainda saltou para o terceiro lugar mundial entre os canais de clubes de futebol do YouTube, com 4,8 milhões de inscritos, atrás apenas de Barcelona (9,6 milhões) e Real Madrid (5,8 milhões).

A Globo, naturalmente, não está gostando dessas mudanças. Lembra que 19 dos 20 times da Série A estão presos por contratos assinados até 2024. A possível perda de renda bilionária provocada pela MP 984 é apontada como uma das razões pelas quais a Globo se transformou numa máquina de guerra permanente ao governo Bolsonaro.

A caixa de mudanças está aberta e será impossível que tudo continue como antes


Para aumentar a dor de cabeça da emissora carioca, 16 dos 20 participantes da Série A do Brasileirão lançaram um manifesto a favor da medida provisória. “O torcedor é diretamente beneficiado”, argumentam os clubes. “Com mais partidas sendo exibidas, teremos um futebol mais democrático, mais acessível e mais barato […] [A MP] empodera os clubes a negociar seus direitos e incentiva a união entre as equipes. Esse formato prevalece nos principais mercados de todo o mundo. […] A MP viabiliza a entrada de novos investidores no mercado, sem afastar os atuais, aumentando a disputa. […] A legislação anterior tinha mais de 50 anos e não refletia uma forma moderna de negociação dos direitos esportivos.” Só Botafogo, Fluminense, Grêmio e São Paulo ficaram de fora do manifesto.

De certa forma, a CBF deu seu aval ao novo formato ao lançar a tabela do Brasileirão 2020 em que prevê transmissões de partidas pela TNT. A Globo já anunciou que vai tomar medidas legais, pois “é detentora dos direitos exclusivos de transmissão de todos os jogos dos clubes participantes da Série A do Campeonato Brasileiro 2020, em todas as mídias, e vem pagando por isso”. Insistirá em manter essa situação ultrapassada em todos os principais centros futebolísticos, com exceção de Portugal e Brasil. A regra nos principais campeonatos europeus é o no single buyer — os direitos não podem ser entregues a um único grupo de mídia. O campeonato alemão, por exemplo, está repartido entre a Sky (cabo), o DAZN e o Amazon Prime (streaming) e a ZDF (emissora pública).

A MP editada pelo presidente Bolsonaro tem 60 dias de validade, prorrogáveis por mais 60. Está em análise para votação no Congresso. Pode se transformar em mais uma confusão jurídica como tantas outras que sufocam o país, caso aprovada com muitas emendas. Ou caducar se não for votada a tempo. Mas a caixa de mudanças está aberta, e será impossível que tudo continue como antes.

Além da MP 984, outro fator que está mudando o panorama das transmissões de futebol é a migração inevitável para a internet. O aplicativo mais conhecido é o DAZN (lê-se “Dazon”), uma empresa britânica criada em 2015, presente em nove países de quatro continentes, incluindo o Brasil. Anunciou para este ano a expansão para 200 países e territórios, mas o crescimento foi retardado pela pandemia da covid-19.

Os grandes anunciantes já começaram a entender que a Globo não é mais o único caminho


O DAZN já é o maior serviço de streaming de esportes do mundo e atua em várias modalidades, algumas bem exóticas, como dardos e bilhar. Por menos de R$ 20 mensais, oferece ao mercado brasileiro a Premier League inglesa, o MLS norte-americano, a copa dos Emirados Árabes, além de campeonatos brasileiros como o estadual paranaense e o Brasileirão da Série C. Se você torce por times como São Bento, Ituano, Santa Cruz, Criciúma, Londrina ou o Botafogo da Paraíba, vai dar mais importância ao DAZN do que aos jogos da Globo.

Em 1º de agosto, o DAZN transmitiu pela primeira vez a final da Copa da Inglaterra com um forte patrocinador (a Renault Brasil). Os grandes anunciantes entenderam que a Globo não é mais o único caminho. Como se não bastasse, a Netflix e a Amazon também estão entrando com força no mercado de transmissão de esportes. Até o Facebook adquiriu no ano passado direitos de transmissão da Libertadores e da Liga dos Campeões da Europa. Os mais arrojados já apostam no fim do próprio conceito de TV a cabo.

Os muito fanáticos por esportes podem explorar também outro aplicativo, o MyCujoo. A plataforma foi lançada em 2015 por dois irmãos portugueses, Pedro e João Presa, para ser uma comunidade global de futebol e cresceu para virar um grande negócio. Transmite alguns jogos de graça, cobra por outros e oferece ao usuário a chance de contribuir com uma doação ao seu clube favorito. Quem vive para a bola pode assistir a partidas de mais de 200 países e territórios, da Costa do Marfim ao Iraque, das Ilhas Fiji à Costa Rica, da Lituânia a Hong Kong. Quase nada é ao vivo, mas por esse aplicativo é possível sentir quanto o futebol enlouquece todos os povos do mundo.

O MyCujoo vai um pouco além. Permite que o usuário transmita sua própria partida para o mundo inteiro. Muitas das transmissões do aplicativo são realizadas com alguém na beira de um campinho, girando o celular montado num tripé.

Claro que apps como DAZN e MyCujoo ainda parecem muito distantes para quem gostaria de simplesmente acompanhar seu Fla-Flu, Gre-Nal ou o derby Corinthians X Palmeiras. Mas esses serviços estão ajudando a abrir caminhos para mudar radicalmente a atual situação, frustrante para o João Torcedor e para todos os que amam o futebol brasileiro.


Dagomir Marquezi, nascido em São Paulo, é escritor, roteirista e jornalista. Autor dos livros Auika!, Alma Digital, História Aberta, 50 Pilotos — A Arte de se Iniciar uma Série e Open Channel D: The Man from U.N.C.L.E. Affair. Prêmio Funarte de dramaturgia com a peça Intervalo. Ligado especialmente a temas relacionados com cultura pop, direito dos animais e tecnologia.


Revista Oeste