Parece inacreditável que ainda exista em nosso país essa discussão inútil a respeito de esquerda ou direita, como se vê na disputa entre os candidatos presidenciais Jair Bolsonaro e Fernando Haddad. Os dois termos parecem ter-se originado durante a Primeira República Francesa, quando, no verão de 1789, a Assembleia Nacional se reuniu em Paris e dela participaram conservadores, opostos a qualquer mudança e a qualquer diminuição dos privilégios da nobreza; liberais, favoráveis a um governo representativo; e radicais, que preconizavam igualdade e liberdade.
O anfiteatro tinha a forma de ferradura, não por refletir a burrice de alguns, mas porque acomodaria melhor os conservadores, à direita do presidente, os radicais à esquerda e os liberais ao centro. Naquele momento mágico da Revolução Francesa, que influiu de forma perene no mundo ocidental, ganhou expressão a malcheirosa palavra ideologia, com a divisão entre nós e eles, esquerda e direita.
Hoje os direitistas proclamam, talvez com alguma razão, que nunca se viu um governo de esquerda dar certo, prosperar e melhorar economicamente a vida das pessoas, “porque a esquerda não sabe governar”. E argumentam que a própria China só deu certo e cresceu a partir do momento em que volveu à direita e adotou a economia de mercado, passando a pagar melhor ao funcionário que produzisse mais.
Já os esquerdistas parecem ter ficado escravos da pregação marxista, que chegou a convencer e a empolgar milhões de pessoas. Marx, aquele filósofo sonhador, fora seriamente contaminado pelas ideias de Engels, para quem o Estado tenderia a desaparecer e acabaria colocado num museu de antiguidades, ao lado da roda de fiar e do machado de bronze.
Marx sonhava e pregava que a violência na sociedade capitalista nasce da privação econômica e que, dando ao homem alimentos, roupas e abrigo suficientes, a necessidade de recorrer à força declinaria. Quando a sociedade sem classes tiver sido atingida, dizia aquele admirável sonhador, desapareceriam não apenas as diferenças de classe, mas também as diferenças nacionais. E finalmente o próprio Estado deixaria de existir. Assim como o capitalismo, as divergências criadas pela burguesia também desapareceriam, e todos os homens passariam a viver como irmãos.
Esses argumentos foram bastante sedutores, a ponto de no princípio do século passado convencerem milhões de pessoas, em quase todos os países, principalmente a elite intelectual. Entre nós, essa embriaguez política ganhou feição própria e em determinado momento, com a renúncia de Jânio Quadros, levou à luta a classe trabalhadora, menos privilegiada. Operários e soldados, cabos e sargentos, passaram a exigir reformas de base, defendidas pelo presidente João Goulart e Leonel Brizola, com o erro grave (e fatal) de pregar até mesmo o desrespeito à disciplina nas Forças Armadas.
Realmente, de forma ostensiva e desafiadora cabos e sargentos passaram a divergir publicamente de seus oficiais e isso difundiu o medo de que o País mergulhasse de cabeça numa ditadura de esquerda. As forças conservadoras, chamadas de “direita”, despertaram bem assustadas e começaram a sugerir, quase como exigência, a intervenção das Forças Armadas, o que acabou sendo feito sem nenhuma delicadeza (ao contrário, havia tanques e canhões nas ruas).
Daí vieram dias sombrios, às vezes chamados de tempos de chumbo, com atos terroristas de jovens inconformados, estimulados por políticos, e repressão nada piedosa das forças militares que dirigiam o País. Após alguns anos de turbulência, militares de feição liberal passaram a discutir uma forma de devolver o poder aos civis, mas, naquela altura, jovens inconformados e de índole violenta cometeram o equívoco de jogar uma bomba no quartel do II Exército, em São Paulo, fazendo em pedaços um recruta de 18 anos que no momento estava de sentinela. O soldado se chamava Mário Kozel Filho, católico praticante, que talvez nem soubesse o que vinha a ser esquerda e direita, muito menos reformas de base.
O incidente levou a cúpula militar a concluir que seria desastroso devolver o País “a esses loucos” e por isso o domínio das Forças Armadas permaneceu ainda por vários anos. Agora, com o aparecimento político de Jair Bolsonaro, disputando a Presidência da República, todo esse passado de confronto entre civis e militares passou a ser relembrado, como se isso representasse “a direita” ou “o fascismo”.
Sempre houve um parentesco bem próximo entre as doutrinas totalitárias, ou seja, comunismo, fascismo e nazismo se amoldam bem no mesmo rótulo. Nessas doutrinas, o domínio da maioria por uma elite minoritária parece inconcebível, mas tem-se verificado repetidamente.
Na pirâmide social, torna-se absurdo que uma minoria permaneça no topo e a maioria resulte esmagada na base, muito mais ampla. Nossos vizinhos venezuelanos, por exemplo, estão feridos na base, enquanto a minoria totalitária de Nicolás Maduro parece governar com ódio do povo e, a exemplo do que ocorre em Cuba, subjuga e deixa anestesiada a maioria, que o detesta.
Graças às instituições em pleno funcionamento, com imprensa livre e independente, não haverá lugar em nosso país para radicalismos de esquerda ou de direita, nem para que o Brasil se transforme numa Venezuela. A nossa vocação e a nossa predestinação são para uma República de verdade, com liberdade de expressão e respeito aos contrários.
Ademais, ainda que os nossos governantes não tenham demonstrado a eficiência necessária para melhorar a qualidade de vida dos mais pobres, forçoso é concluir que a vontade da maioria tem prevalecido e as escolhas têm sido realizadas com liberdade.
DESEMBARGADOR APOSENTADO DO TJSP
O Estado de São Paulo