Como as experiências na adolescência e no Exército ajudaram a forjar o ex-integrante do baixo clero da Câmara que virou presidente da República
Integrantes da fauna política da Câmara, sobretudo os que estão habituados a percorrer o Salão Verde seguidos por fileiras de assessores e jornalistas, costumam relegar ao isolamento a chamada cota folclórica da Casa — deputados que chamam atenção menos por seu trabalho parlamentar do que por sua imagem ou suas ideias consideradas caricatas ou francamente estapafúrdias. Tiririca, por exemplo, é visto quase sempre sozinho, sentado nas últimas fileiras do plenário. Sua única companhia parlamentar é o cantor sertanejo Sérgio Reis, outra figura deslocada da paisagem, e que não tentou a reeleição. Jair Bolsonaro, até recentemente, fazia parte dessa turma. No plenário, estava sempre imerso na tela do seu celular, sozinho ou na companhia do filho, o também deputado Eduardo Bolsonaro. Nunca foi visto jantando no Piantella nem tomando uísque no Churchill, o restaurante e o bar de Brasília onde os parlamentares mais enturmados costumam confraternizar. Em sete mandatos consecutivos, conseguiu aprovar apenas dois projetos e jamais deixou o Anexo 3, considerado a Sibéria da Câmara, por seus gabinetes apertados e sem banheiro. Jair Bolsonaro, em suma, passou quase trinta anos no Congresso como um indefectível membro do baixo clero: sem destaque, sem poder e sem uma turma para chamar de sua — características que acabou por transformar em ativos de campanha.
Ele entrou para a política menos por desejo ou vocação do que por necessidade. Em 1988, quando era capitão do Exército, recebeu de um colega a informação de que a instituição abriria nova investigação contra ele por um episódio que por pouco não resultara na sua expulsão, um ano antes: a revelação, feita por VEJA, de que ele e um colega haviam planejado explodir bombas numa adutora do Rio de Janeiro para forçar o comando do Exército a atender as reivindicações de aumento salarial da categoria. O processo terminou arquivado por insuficiência de provas, mas, diante da informação de que fatos novos poderiam reabri-lo, Bolsonaro preferiu não pagar para ver e deixou o Exército. Candidatou-se a vereador pelo Rio e resolveu que, na hipótese de não se eleger (para ele, a mais provável), iria trabalhar como limpador de casco de navio, aproveitando o curso de mergulho que fizera anos antes. Mas Bolsonaro acabou eleito pelo hoje extinto PDC e nunca mais vestiu a farda. Ficou dois anos na Câmara Municipal antes de vencer a primeira das sete eleições para deputado federal, em 1990. Em Brasília, continuou a atuar para agradar a sua base de apoio. Diariamente, lia os obituários dos jornais para verificar se havia algum militar entre os mortos. Se houvesse, enviava condolências à família do falecido.
Em 1993, já no PPR, enfrentou seu primeiro processo por quebra de decoro parlamentar ao defender em plenário o fechamento do Congresso. Outros seis viriam depois: por chamar o ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira de ladrão (1995), por afirmar que o presidente Fernando Henrique Cardoso merecia ser “fuzilado” (2000), por associar numa entrevista mulheres negras à promiscuidade (2011), por ter supostamente dado um soco no senador Randolfe Rodrigues (2013), por chamar a deputada Maria do Rosário de “vagabunda” e dizer que só não a estupraria porque ela “não merecia” (2014) e por homenagear o coronel e torturador Carlos Brilhante Ustra na votação pelo impeachment de Dilma Rousseff (2016). O caso de Maria do Rosário ecoa até hoje, e por causa dele Bolsonaro é réu em ações no Supremo Tribunal Federal (STF) pelos crimes de incitação ao estupro e injúria.
O deputado Bolsonaro deixou o ostracismo em 2011, quando encabeçou a oposição parlamentar ao que batizou pejorativamente de “kit gay”, material escolar idealizado pelo então ministro da Educação de Dilma, Fernando Haddad, para debater sexualidade nas escolas. Ao se apresentar como feroz adversário do movimento em defesa de questões identitárias e do politicamente correto, ganhou publicidade gratuita nas redes sociais, tanto de usuários que compartilhavam da sua revolta quanto dos que começavam a se indignar com seus vitupérios. O deputado soube aproveitar a onda — não recusava entrevistas nem para trabalhos de conclusão de curso em faculdades. Da controvérsia sobre o “kit gay” surgiu o “mito”, como o chamam hoje seus mais empolgados seguidores na internet.
Bolsonaro nasceu no município de Glicério (SP), em 1955, mas foi registrado em Campinas e passou a maior parte da infância e adolescência em Eldorado Paulista, que fica no Vale do Ribeira, uma das regiões mais pobres do Estado de São Paulo. Sem indústria e com uma tímida produção agrícola, ela parece ter parado no tempo — a população continua do mesmo tamanho de quando o pai de Bolsonaro decidiu levar a família para lá. Percy Geraldo Bolsonaro viajava de cidade em cidade trabalhando como dentista prático, já que não cursara odontologia. Em 1961, resolveu fixar-se em Eldorado. A família Bolsonaro tinha uma vida modesta. Os seis filhos de Percy, três homens e três mulheres, frequentaram a escola pública. Bolsonaro, goleiro do time local, era conhecido como “Invertido”, pelo jeito desengonçado com que agarrava a bola, e “Palmito”, por causa das pernas compridas e brancas. Suas diversões preferidas eram matar passarinho com espingarda de chumbo e assistir aos filmes de Mazzaropi no cinema — o único vestígio de vida cosmopolita na cidadezinha, cercada pela Mata Atlântica.
Bolsonaro só saiu de Eldorado aos 18 anos, mas o município nunca saiu dele. Muitas de suas convicções parecem derivar das experiências que acumulou por lá. A própria escolha da carreira militar é consequência de um episódio marcante ocorrido na cidade em 1970. Naquele ano, o grupo do comunista Carlos Lamarca chegou a Eldorado e entrou em confronto com soldados locais. A troca de tiros se deu na praça em que ficava a escola de Bolsonaro. Ele se lembra de tê-la atravessado, junto com outros adolescentes e crianças, alguns rastejando em meio à fumaça e ao cheiro de pólvora. O tiroteio, que deixou uma mulher e seis soldados feridos, fez com que o Exército mandasse tropas para o Vale do Ribeira. Vistos como heróis na cidade, os militares passaram a receber em seu acampamento a visita constante do então jovem Bolsonaro — a partir daí determinado a ser um deles. Sua família se entusiasmou com a ideia. Não haveria mesmo muito futuro para o menino no comércio ou nas plantações de banana de Eldorado.
Naquela época, existiam na região 66 áreas de quilombolas, ocupadas desde o século XVI. Na década de 70, ainda durante a ditadura militar, elas viraram patrimônio cultural, o que desagradou a agricultores que perderam terras cultiváveis. As demarcações feitas ao redor de Eldorado parecem estar na origem de duas ideias defendidas por Bolsonaro ao longo de sua vida pública: a de que as reservas indígenas prejudicam as populações em seu entorno e a de que os quilombolas são improdutivos. “Não fazem nada, acho que nem para procriadores servem mais”, disse Bolsonaro em abril. O comentário rendeu-lhe no STF outro processo — dessa vez, por racismo —, do qual escapou em setembro.
Já o interesse de Bolsonaro por minerais remonta ao tempo em que garimpou nas serras próximas ao município, seguindo o exemplo do pai. Há uma crença na região de que existe ouro na Mata Atlântica do Vale do Ribeira, e que as terras se tornaram “reservas legais” justamente para proibir a retirada do minério pela população local. É mais ou menos o mesmo raciocínio que Bolsonaro usa quando argumenta que a exploração das riquezas minerais deveria ser liberada para os brasileiros, antes que estrangeiros — sobretudo os chineses — se apoderem delas.
Bolsonaro acalentava a ideia de candidatar-se à Presidência da República pelo menos desde 2014, quando apresentou a proposta ao seu então partido, o PP, que a rejeitou, preferindo apoiar a candidatura de Dilma Rousseff (antes de entrar no PSL, ele passou também pelo PTB, PFL e PSC). Naquele ano, o parlamentar sagrou-se o terceiro deputado mais votado do Brasil. Foi o primeiro indício de que o sujeito calado e solitário da Câmara tinha começado a colher os frutos das muitas horas que havia passado no fundo do plenário imerso na tela de seu celular.
A formação de uma gigantesca base de apoiadores que conquistou nas redes sociais — associada a outras práticas no mundo digital que estão sob investigação — foi fundamental para a sua transmutação de deputado nanico a presidente da República. A partir de 1º de janeiro, Bolsonaro passará a ter em quantidade o que nunca teve nem escassamente: poder, influência e uma turma para chamar de sua. Poderá usar desses trunfos para engrandecer a si mesmo e ao país que vai governar — ou apequenar a ambos.
Com reportagem de Nonato Viegas
Edoardo Ghirotto e Gabriel Castro, Veja