Existiria um destino no estilo dos gregos antigos – uma linha bem marcada para cada vida individual e coletiva que, como um entrecho de teatro ou cinema, a marcasse definitivamente? Ou tudo é obra do acaso e da indiferença? O que existe, na verdade, é uma combinação dessas dimensões, cabendo a nós discernir o que pode ser visto como acaso ou sina e determinação.
Um resumo refinado desse dilema e da ponte capaz de transcendê-lo foi sugerido por Thornton Wilder no curso de um livro profundo e definitivo, A Ponte de San Luis Rey (de 1927), quando ele observa: “Alguns dizem que nós jamais saberemos que para os deuses somos como as moscas que os meninos matam num dia de verão; outros, ao contrário, dizem que nem um simples pardal perde uma pena que não tenha sido arrancada pelo dedo de Deus”.
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Acaso ou necessidade têm sido uma dúvida (e uma questão) importante nesse nosso polarizado momento eleitoral. Afinal, vamos superar o nosso destino acasalado ao autoritarismo e à desigualdade, ou vamos repetir o passado marcado por privilégios?
Os candidatos que dividem majoritariamente a cena eleitoral – Haddad e Bolsonaro – deixam dúvidas quanto à repetição ou à inovação que nasce do acaso. De fato, o candidato petista simplesmente nega a realidade, evitando atribuir qualquer responsabilidade aos erros do seu partido – erros que levaram à prisão de Lula e o fizeram seu substituto. Já Bolsonaro duvida também do método pelo qual um candidato é legitimado quando suspeita da urna eletrônica e diz que só aceita a vitória. Isso para não mencionar a veemente batalha que tem travado contra o bom senso, o politicamente correto e o radicalismo chique.
A ausência de autocrítica e a não admissão da incerteza eleitoral (constitutivos do jogo democrático) são os fios que tecem regimes e sistemas autoritários.
Tais atitudes revelam como não somos apenas uma democracia jovem ou frágil. Elas mostram algo muito mais denso e grave. Falamos, mas não sabemos quais são as demandas sociais e morais de um regime democrático, abrangendo os seus riscos e limites. Realmente, um dos pontos dramáticos de tudo isso é verificar que, no Brasil, o sistema político ainda não chegou a um acordo sobre as regras que devem governar o jogo eleitoral, cujo caráter é sempre volátil, mas a própria ética sociocultural, que tem posicionamentos contrários sobre o que seria legítimo, sobre o que seria irredutível e – quem sabe? – sobre o próprio significado da democracia como conjunto de práticas e ideais. A suspeita, ademais, se agrava quando se observa que a premissa básica do poder à brasileira jaz na crença segundo a qual vale tudo quando se busca o poder – que tudo justifica. Nesse credo, o poder não é procurado somente para o bem-estar geral e a consolidação de valores coletivos, mas para derrotar a qualquer custo ou preço o adversário.
Tal visão é cega para os eventuais riscos e as saídas não previstas – as ironias explicitadas por R. Merton a partir de Max Weber (sem esquecer A. Hirschman) –, quando programas, movimentos e tecnologias geram questões inesperadas, algumas delas não previstas nas suas intenções. Comunicação abusiva engendra mais fake news do que informação e sabedoria; intenções democráticas reinventam o risco de autoritarismo; a confusão entre populismo e igualdade produz corrupção; um mundo globalizado reaviva isolacionismo.
Tais reversões são também contextos nos quais se discernem as forças que impedem o progresso e a construção de um viés aberto e igualitário.
“As dificuldades precisam primeiro tomar vulto, só depois podem ser superadas”, diz Thomas Mann. A sociedade tem protagonismo e nós sentimos antes de compreender o que ocorre em nossa volta. O Brasil, ademais, não quer mais ser um programa de auditório.
O Estado de São Paulo