Praticamente desde o começo do ciclo petista, de modo intermitente e nem sempre por motivos razoáveis, pois, afinal, o poder está em jogo em eleições regulares, tem vindo à tona o fantasma de possíveis dificuldades para o cumprimento de um requisito mínimo da política democrática, a saber, a alternância no poder. Não propriamente que algum dirigente do partido dominante brandisse armas do arcaico arsenal da velha esquerda revolucionarista - não reformista! -, como a "ditadura do proletariado" ou as "democracias populares", as quais, uma vez instaladas, exigiriam a ruptura definitiva com o passado das respectivas sociedades e instaurariam uma realidade radicalmente nova - um modo de produção dito socialista - que não permitisse recuo ou reversão, a não ser pela via catastrófica da contrarrevolução e da guerra civil.
Evidentemente, nenhuma estratégia desse tipo era, ou é, possível na circunstância brasileira, e, ainda que o fosse, por certo não seria nem remotamente desejável. Mesmo assim, aqui e ali surgiram alusões a uma hipótese de "mexicanização", entendendo-se por isso o prolongado domínio de um partido da "revolução institucional", cujos movimentos de enquadramento oficialista da sociedade, decapitação de forças conservadoras e ocupação muitas vezes destruidora das instituições o deixassem praticamente sozinho em cena aberta, sem adversários capazes de propor o rodízio no poder, com aliados em posição subalterna e o sistema de freios e contrapesos abalado.
O partido dominante - afirmou-se em diferentes ocasiões - tinha menos um projeto de governo do que um projeto de poder; menos um programa de reformas sociais, num sentido simultâneo de mais liberdade e mais igualdade, do que a ideia de se manter por tempo indefinido à frente do Estado, valendo-se de maciços recursos do poder para "fazer amigos" e reduzir inimigos a sparrings de conveniência, marcados para perder.
De fato, uma parte desse diagnóstico pôde buscar amparo em elementos da ideologia e da ação prática do petismo, ainda alimentados pela incompletude, nesse partido, da mudança imposta pela realidade às esquerdas de todo o mundo em fins do século passado: na formulação de Norbert Lechner, a transição do paradigma revolucionário, tão em voga nos anos 1960, para o democrático, que traz em si, essencialmente, a exigência de compatibilizar hegemonia e pluralismo, programação econômica e mercado, ativismo estatal esclarecido e respeito às múltiplas dimensões e a atores da sociedade civil e da sociedade política.
Outra parte do diagnóstico, porém, provém de uma segunda ordem de problemas. A anomalia "mexicana" contou, para se estabelecer e consolidar, com a fraqueza de outras forças da esquerda moderada, e mesmo da centro-esquerda, que, não compreendendo a natureza do desafio apresentado pelo principal esteio daquela anomalia, se deixaram conduzir de modo mais ou menos inerme à posição de adversários convencionais, batidos em eleições nas quais se apresentaram internamente conflagrados e destituídos de laços "orgânicos" com uma sociedade que se modificava aceleradamente, com alterações vistosas no mercado de trabalho, nos padrões de consumo, nas expectativas sobre o setor público como provedor de serviços essenciais.
Definitivamente, partidos de notáveis, com vida interna restrita às ocasiões eleitorais, não são páreo para um partido de massas (originalmente de massas), com vocação para se apossar das estruturas de poder e, ainda por cima, como ficou demonstrado no minucioso julgamento da Ação Penal 470, lançado ao jogo bruto da desestruturação do sistema partidário e da desfiguração do órgão central da democracia representativa. Atributos, deve-se repetir, não inerentes à esquerda tout court, mas à sua parte ainda hostil à centralidade da democracia como o trâmite irrecorrível de qualquer projeto de mudança social que se queira legítimo.
O bloco à moda "mexicana" não se instalou só por causa da fraqueza de seus rivais da esquerda democrática ou da capacidade de cooptar, com método, a parte conservadora. Teve a seu dispor, por um bom período da primeira década do século, condições excepcionais para sua vigência e reprodução, com os recursos advindos da demanda de commodities e a correlata emergência da China, este fato espantoso, com a força dos deslocamentos tectônicos, que ainda mal conseguimos conceituar. Teve, assim, recursos para pôr em prática mecanismos clássicos de consenso passivo, como o populismo cambial ou o sistema de bolsas, considerado menos como direito da cidadania do que como dádiva do governante, ele mesmo entendido como "encarnação física da identidade metafísica da nação", para mencionar outra expressão de Lechner.
Nem o desaparecimento dessas condições favoráveis nem processos judiciais, como o da Ação Penal 470 ou o que parece avizinhar-se em torno da Petrobrás, têm por si sós o atributo de abrir o caminho da alternativa. Podem favorecer, como favoreceram, trincas no bloco antes aparentemente homogêneo, como a passagem para a área oposicionista de Marina Silva e Eduardo Campos. Podem vitaminar a oposição tradicional, se não neste, certamente em futuros embates. Podem dar fôlego a forças governistas de centro que se colocam como garantidoras das liberdades, como o PMDB histórico ou o que dele tiver restado. Mas, como está à vista de todos, não dispensam a condução sábia de diferenças e divergências entre atores e forças das oposições democráticas.
A ativação destas forças, se souberem superar o estágio grosseiramente chamado de "antropofagia de anões", será vital para a ocupação de um lugar desgraçadamente vazio na política brasileira - o de uma esquerda democrática. Será bom para a esquerda, melhor ainda para a democracia.
*Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta. É um dos organizadores das 'Obras' de Gramsci no Brasil.