"Perder a cabeça com Marie Kondo"
Uma pergunta simples: quais são os grandes problemas do mundo? Sim, existem 8 milhões de famintos no Iêmen. Sim, a Venezuela deixou de ser um país funcional e é hoje mais um cadáver socialista. Sim, é preciso estar atento ao comportamento nuclear da Coreia do Norte.
Mas, nessa salada indigesta, é preciso não esquecer o estado deplorável em que se encontra a decoração interior de certas casas ocidentais. Desconhecia a magnitude da tragédia —mas o programa de uma senhora japonesa despertou em mim simpatia humanitária. O título é "Ordem na Casa com Marie Kondo", que estreou na Netlfix.
No primeiro episódio —o único que vi; tenho lágrima fácil— encontramos uma família americana, razoavelmente afluente, com duas crianças de quatro e dois anos. A família parece feliz e equilibrada. Mas a ilusão dura pouco: por trás dessa máscara há uma dor profunda. O casal não sabe onde arrumar as cuecas.
Aliás, quem fala em cuecas, fala em tudo o resto: roupas; louça; brinquedos; e uma garagem que, aos olhos de um amador, tem os contornos de uma garagem normal.
O casal precisa de ajuda, a lgo que ninguém se atreve a contestar: se dois adultos são incapazes de arrumar a própria casa, isso pode indicar um certo nível de atraso cognitivo que põe em risco a estabilidade das crianças.
Acontece que a ajuda não é médica; é espiritual —e Marie Kondo entra em cena. A senhora Kondo, segundo parece, tem um método especial para arrumar casas que faz sucesso planetário. Resumidamente, consiste em conservar os objetos que nos dão "alegria" e jogar fora todo o resto.
E, não, entre esses objetos que nos fazem sorrir não estão apenas brinquedos sexuais ou aquelas sementes mágicas que trouxemos dentro dos sapatos quando voltamos de Amsterdã. Qualquer coisa pode dar alegria, embora o programa seja omisso sobre o contributo das sementes mágicas para esse estado de espírito.
Mas, antes do método, é preciso contemplar o horror. Falo do horror de Marie Kondo quando chega à pocilga familiar. O casal está nervoso. Tem razões para estar: quando a senhora Kondo, deambulando pela casa como se fosse Angelina Jolie pelos campos de refugiados da ONU, contempla a louça amontoada na cozinha, é como se tivesse visto pedaços de corpos humanos que algum canibal ali deixou como sobras do jantar.
A mudança é urgente. A dona da casa, em lágrimas, diz que quer mudar. Mas Kondo, antes de passar à ação, ajoelha-se em oração. Pelos vistos, é preciso agradecer à própria casa antes de a violentarmos com um pouco de arrumação.
Perante as rezas de Kondo, a família revela incredulidade, talvez medo, quem sabe uma vontade imediata de sair correndo pela porta dos fundos. Mas agora é tarde para voltar para trás.
Primeira tarefa: empilhar toda a roupa que temos, contemplar a montanha de inutilidades e jogar fora tudo que não desperta alegria em nós. Mas com respeito, avisa Kondo: devemos nos despedir da roupa com um "obrigado" sincero e meigo, e também com um abraço bem apertado.
Dito e feito: o casal começa a conversar com calças, camisetas, blusas; e a abraçar pijamas, bermudas, eventualmente fraldas sujas que esqueceram de reciclar.
Depois da purga, a segunda etapa: organizar sem misturar. Existem cinco categorias a ter em conta: roupas, livros, documentos, "komono" (miscelânea) e itens sentimentais. Cada uma dessas categorias pode ser dividida em subcategorias, e em sub-subcategorias, desde que não desfigurem a natureza da categoria mãe.
No fundo, qualquer especialista dirá que o método consiste em aplicar os sintomas típicos do transtorno obsessivo-compulsivo a todos os objetos do lar. Essa foi a parte do show em que eu chorei de verdade: se eu soubesse que o TOC valia milhões, já teria parado a medicação há muito tempo.
Porque vale a pena: no final da odisseia, que durou um mês, não há palavras para descrever o estado da casa. Embora eu talvez arriscasse o adjetivo... "Arrumada"?
Mas esse não é ponto do método de Kondo. O ponto é que o casal reencontrou o amor enquanto dobrava meias e calcinhas. "A arrumação é sexy", diz a mulher, com um sorriso de orelha a orelha.
Não pretendo criar polêmicas. Mas se uma mulher adulta pensa que é sexy dobrar meias e calcinhas, de duas uma: ou ela tem uma vida muito infeliz ou nós não sabemos o que estamos perdendo.
Prometo investigar. E aconselho o mesmo a cada leitor e leitora desta coluna. Hoje, quando chegar ao quarto, não se esqueça de dizer: "A roupa já secou, meu bem? Então traz logo esses trapinhos que eu estou louco para dobrar cada peça do teu guarda-roupa!".
Se o outro, depois de escutar isso, não fugir horrorizado, parabéns: encontrou uma alma gêmea para a vida inteira. No asilo.
Folha de São Paulo