quarta-feira, 19 de julho de 2017

"Falsa reforma", editorial do Estadão

No momento em que o mundo político se encontra na berlinda, acossado por denúncias de corrupção, seria razoável esperar que os políticos se empenhassem mais do que nunca para demonstrar à opinião pública que ainda têm algum compromisso com o País, e não somente com seus próprios interesses. Contudo, quando se observa o que está sendo feito com a urgente e imprescindível reforma política, constata-se, infelizmente, que há parlamentares realmente indiferentes ao destino do País, preocupados que estão somente em legislar em proveito próprio ou de poderosos padrinhos.
Em um caso cuja desfaçatez dificilmente será superada, o deputado petista Vicente Cândido, relator da reforma política na Câmara, incluiu sorrateiramente em seu texto uma alteração no Código Eleitoral que, se aprovada, impedirá a prisão de candidatos até oito meses antes da eleição. O dispositivo que o parlamentar pretende modificar é o parágrafo 1.º do artigo 236, segundo o qual nenhum candidato poderá ser preso desde 15 dias antes da eleição até 48 horas depois do pleito, salvo em flagrante delito ou em virtude de sentença criminal condenatória por crime inafiançável. Trata-se de uma forma de evitar que candidatos sejam alijados da disputa às vésperas da votação em razão da decretação indevida de prisão provisória, baseada em falsa acusação.
Com indecorosa naturalidade, o petista Vicente Cândido pretende transformar essa garantia legal em um instrumento para livrar da cadeia o chefão de seu partido, o sr. Lula da Silva, já condenado em primeira instância por corrupção e lavagem de dinheiro.
O deputado Vicente Cândido jura que sua proposta não se presta a salvar Lula. Segundo o petista, trata-se de uma reação à “judicialização da política”. Ou seja, o parlamentar pretende transformar o necessário debate sobre os exageros de alguns promotores e juízes contra políticos em argumento maroto para justificar a concessão de vergonhoso salvo-conduto para Lula. Felizmente, a artimanha foi fortemente rechaçada por vários parlamentares. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), disse que a proposta “não foi negociada com ninguém” e que não deve prosperar.
Mas a “emenda Lula” não é a única aberração ora em discussão dentro da reforma política. O relatório do deputado Vicente Cândido prevê também a criação de um “Fundo Especial de Financiamento da Democracia”, que destina 0,5% da receita líquida do governo federal para bancar os partidos em tempos de eleição. Isso dá algo em torno de R$ 5,9 bilhões, mas essa espantosa cifra não é o principal problema da proposta, e sim o fato de que ela obriga o contribuinte a financiar entidades privadas que deveriam ser sustentadas por seus simpatizantes, militantes e eleitores.
Além disso, o relator da reforma propôs o sistema de voto em lista pré-ordenada de candidatos – mecanismo que favorece os caciques partidários, interessadíssimos em manter o foro privilegiado em razão das agruras causadas pela Lava Jato. Mas seus colegas parlamentares defendem algo ainda pior: o “distritão”. Trata-se de um modelo em que são eleitos para o Legislativo apenas os candidatos mais bem votados em cada Estado. Não por acaso, esse modelo é apelidado de “sistema Tiririca”, pois favorece os candidatos célebres não em razão de suas propostas, mas por sua visibilidade como figuras do mundo do entretenimento. O “distritão” tende a beneficiar igualmente vários dos atuais parlamentares, que já são conhecidos dos eleitores e, por isso, monopolizam os recursos de seus partidos.
Está claro que, embora se dê a isso o nome de “reforma”, o que se tem é uma série de gambiarras cujo objetivo é garantir que tudo fique como está. Se quisessem de fato melhorar alguma coisa, os parlamentares poderiam se empenhar um pouco mais em aprovar o fim das coligações para as eleições proporcionais – artifício que deforma completamente a representatividade do voto e permite toda sorte de mutretas entre partidos – e em impor uma cláusula de barreira para liquidar os partidos de aluguel. Não se deve esperar, é claro, que os políticos façam essas mudanças por convicção. Que seja, então, por pudor.