Bobby Yip/Reuters | |
Trabalhadores em fábrica da Foxconn, empresa de origem taiwanesa que produz iPhones |
NATÁLIA PORTINARI - Folha de São Paulo
Os brasileiros passam três horas e 40 minutos por dia no celular, diz a Global Web Index, mas metade, segundo a Mozilla, acha que Facebook e internet são sinônimos –que dirá explicar como funcionam os sensores, as baterias e as telas sensíveis ao toque.
Para sanar esse problema, vale a pena ler "The One Device" [O Dispositivo Único], ainda sem tradução em português, uma rica investigação do jornalista americano Brian Merchant sobre a concepção de cada um dos componentes do iPhone.
O ponto alto são os entrevistados esquecidos pela história, como o carismático e sonhador Frank Canova, ex-funcionário da IBM que inventou um smartphone em 1992, ou a equipe do projeto de "multitouch" (tela de toque múltiplo) que trabalhava clandestinamente na Apple desde 2003, sempre sob a ameaça de Jobs cortar a ideia pela raiz.
O livro não teme ser técnico e explica em detalhes divertidos como a bateria de lítio e o Gorilla Glass, vidro usado por Apple e Google, são feitos.
Dito isso, infelizmente, Brian Merchant é encantado pelo iPhone e por Steve Jobs, a ponto de se induzir ao erro. Podemos dar dois exemplos.
1) "O iPhone é o produto mais vendido de todos os tempos" na sociedade capitalista, diz o jornalista, triunfante.
É um erro. Todos os modelos do iPhone até hoje já venderam mais de 1 bilhão de unidades, mas os modelos da Samsung venderam 1,5 bilhão, segundo a Gartner. A Nokia chegou a 1 bilhão de aparelhos vendidos em 2005.
2) Para ele, o iPhone é símbolo de expansão da internet móvel. Graças à Apple, diz Merchant, "fomos de quando tínhamos um computador apenas em casa ou no trabalho para hoje, que carregamos um por todo lado".
Os americanos, talvez. O resto do mundo foi de nenhuma conexão para o uso de Android, que se popularizou em 2012 e era o sistema de 81% de todos os celulares exportados em 2015, ante 16% com iOS –dados da KPCB.
O iPhone, apesar de ser feito na China, passa pelos Estados Unidos antes de ser vendido, acumulando impostos nas alfândegas. Não houve rugas de preocupação em Jobs pela questão de quão acessível e popular seria o produto.
Quando fala de Jobs, aliás, Merchant usa o tom corrente no Vale do Silício, que vê brilhantismo, sagacidade e liderança onde visivelmente há apenas abuso moral.
Em um capítulo, Merchant investiga, com competência, a afirmação de Jobs de que a Apple teria inventado o "multitouch" e entrevista um engenheiro europeu que já tinha a tecnologia em 1972.
Merchant sustenta, porém, que ninguém "inventa" nada e que o iPhone, em última análise, é um plágio do telégrafo, da câmera, do cinema, de "Jornada nas Estrelas", do próprio ideal de mobilidade. Ele é incapaz de dizer que o executivo mentiu ao apresentar o "multitouch" em 2007.
HOMO ERECTUS
O livro também erra no ritmo. O autor se diz o primeiro jornalista a invadir a Foxconn City, em Shenzhen, na China, onde é feito o iPhone, mas não consegue ver como funciona a linha de montagem.
A empreitada ganha um volume desproporcional de páginas, com digressões para todo lado, mirando até na pré-história. "O Homo erectus, que emergiu há 1,7 milhão de anos, foi a primeira espécie a adotar ferramentas", discorre o autor para explicar o que é o fordismo, por exemplo.
Na Foxconn, há mais de 400 mil operários que nunca tiram férias, fazem dezenas de horas extras sem receber e moram dentro do estabelecimento de trabalho.
Após uma onda de suicídios no prédio, os patrões montaram redes ao redor dos dormitórios para amortecer possíveis quedas, que ainda estão lá na visita de Merchant.
Um executivo da Apple é citado anonimamente explicando por que a mão de obra dessa fábrica é insubstituível.
Quando a companhia precisa trocar um componente ou preparar um celular com urgência, milhares de trabalhadores podem ser convocados imediatamente, sem custo extra, e trabalhar por turnos estendidos, sem pausa para comer nem para ir ao banheiro.
Ainda assim, Merchant contemporiza e conclui que "[a situação precária] não é necessariamente culpa da Apple". De quem é, então? O fato de o escritor não querer provocar nada nem ninguém com essa "história secreta" do iPhone talvez explique a narrativa dispersa do livro.
Para quem conseguir suportar essas falhas, porém, está aí um dos compilados mais informativos sobre o iPhone já escritos, com entrevistas riquíssimas e material de consulta relevante. Não é de jogar fora.
The One Device
QUANTO: R$ 25,60 (LIVRO DIGITAL; 374 PÁGS.)
AUTOR: BRIAN MERCHANT
EDITORA: LITTLE, BROWN AND COMPANY
QUANTO: R$ 25,60 (LIVRO DIGITAL; 374 PÁGS.)
AUTOR: BRIAN MERCHANT
EDITORA: LITTLE, BROWN AND COMPANY