domingo, 30 de julho de 2017

‘O Joesley é que sabia de tudo’, diz advogado delator

Luiz Maklouf Carvalho - O Estado de S. Paulo


O advogado e delator Francisco de Assis e Silva
O advogado e delator da JBS Francisco de Assis e Silva. Foto: Amanda Perobelli/Estadão


“Vou ter que delatar um advogado e um procurador da República”, disse o advogado Francisco de Assis e Silva, da JBS, durante um almoço, em 23 de abril passado, no sofisticado restaurante Nobu, na Avenida 57, em Nova York.
“Você vai virar um whistleblower”, comentou, preocupada, sua filha Vitória Helena, de 20 anos, usando a expressão americana para delator (que significa ‘assoprador de apito’).
“Não tem outro jeito”, respondeu o pai.
“Cuidado com a sua vida, acidentes acontecem”, alertou a filha.
“Foi um dos momentos mais difíceis de todo o drama”, contou Assis e Silva ao Estado, em sua sala de diretor jurídico na sede central da JBS – um complexo logístico de 100 mil metros quadrados e 2,5 mil funcionários, espraiado no número 500 da marginal direita do Tietê. O drama é aquele que abala o Brasil desde 17 de maio, quando veio à luz que o empresário Joesley Batista, patrão do advogado, gravou clandestinamente uma conversa com o presidente Michel Temer, delatando-o à Procuradoria-Geral da República.
Seis outros delatores da JBS seguiram a fila – entre eles o pai de Vitória Helena (e de Sofia Helena, de 13 anos), marido da advogada Carla, administradora dos imóveis da família. “Mais de 50, menos de 100”, na contabilidade do advogado bem-sucedido. Carla ouviu sobre a futura delação que abalaria suas vidas durante um jantar, quando ainda moravam na casa própria de 700 metros quadrados, no bairro de Pinheiros, zona oeste de São Paulo, hoje alugada por R$ 15 mil mensais. “Delatar um procurador da República? Você perdeu completamente o juízo!”, estupefez-se, como contou Assis e Silva. “Depois que eu expliquei, ela me deu todo o apoio e disse que se orgulhava de mim”, complementou.
Na versão que contou à mulher, o advogado virou delator – “o primeiro da categoria na história do Brasil”, como sublinhou – porque vinha ajudando Joesley Batista a corromper o advogado Willer Tomaz e o procurador da República Ângelo Goulart Villela. Os dois estão presos desde 18 de maio, a pedido do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, deferido pelo ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal. “Achamos que não contar essa parte da história nos deixaria reféns do Willer”, explicou o advogado da JBS. “O Joesley deixou a decisão comigo. Sofri muito, chorei muito, mas fiz o que achei certo, e concordei em virar um delator”. (O advogado e o procurador, por seus advogados, alegam inocência).
O procurador da República Eduardo Botão Pelella, chefe de gabinete e braço direito do PGR Rodrigo Janot, foi o primeiro a ouvir de Assis e Silva, nas tratativas preliminares da delação, que havia “um procurador” a dedar. “Mesmo sem saber o nome, o Pelella nos deu todas as garantias de que não haveria espírito de corpo”, contou. Dias depois, com a decisão já tomada, voltou a Pelella:
“A história do procurador é verdadeira”, disse. “O nome dele é Ângelo Goulart Villela”, revelou, sem saber que Villela era do círculo de amigos de Pelella, de Janot e outros graduados integrantes da cúpula da PGR.
“Ô, cara, eu fiz almoço na casa dele no domingo passado, cozinhei macarrão lá”, exclamou um Pelella aturdido e boquiaberto. “Mas, se é corrupto, vai ser tratado com o mesmo rigor”, complementou logo, incentivando o advogado a pôr o caso a termo, como feito no depoimento que prestou, Pelella presente, em 3 de maio. Foi o primeiro de alguns, que continuam. Um dos últimos foi prestado em 20 de junho, no inquérito administrativo disciplinar que investiga, na Corregedoria-Geral do MPF, o caso do procurador Ângelo Villela. Ele reafirmou o que já havia contado (mais informações nesta página). Procurado, Pelella não deu resposta.
“A delação marcou para sempre a minha vida”, disse Assis e Silva. Seu pai, Juvenal, morreu três semanas depois, em 26 de maio, de complicações cardíacas. Tinha 82 anos, e morava em Curitiba, com dona Rosa. Já sabia de quase tudo – que era público desde 17 de maio –, mas o filho não chegou a falar diretamente com ele sobre o escândalo, encargo que repassou à mulher. “Até hoje me pergunto se o caso teve alguma influência”, disse, desolado. Contou que quando soube da morte, em São Paulo, teve uma visão do espírito do pai, sinalizando que estava tudo bem. Não foi a primeira visão que afirma ter tido. Houve outra, nos tempos em que foi seguidor entusiasmado da Ordem Rosa Cruz: conseguiu “materializar” um amigo com quem estava brigado e o convenceu a procurá-lo no dia seguinte, com o espírito já desarmado.
Infância. Francisco de Assis e Silva é paranaense de Campo Mourão, criado em Curitiba. A família era pobre. Vendeu verduras em carrinho de mão, quando rapaz. Deu-se bem nos estudos, e pôde cursar a faculdade de Direito da PUC de Curitiba, onde participou ativamente de entidades estudantis, “nem à esquerda, nem à direita, sempre no centro, como um liberal”. Foi na faculdade que conheceu Carla, filha de médico, a então rica da relação que deu em casamento. Na paralela da faculdade, foi assessor, por oito anos, de um vereador do PMDB, período em que prestou um ano de serviço militar, na Aeronáutica, e gostou.
Formado, em 1989, foi advogado da Trombini Industrial, do ramo de papel e celulose. Quatro anos depois entrou para o grupo Itapemirim, um dos maiores no transporte de passageiros e cargas, do empresário Camilo Cola, onde comandou o departamento jurídico por oito anos. Em 2001, já querendo sair, Carla achou um anúncio da Friboi, dos irmãos Batista. Mandou o currículo. Passou por entrevistas separadas com o trio – “seu” José Batista Júnior, Joesley e Wesley. Seis meses depois foi contratado pela JBS. “Gostei da simplicidade, da energia, e acreditei que eles iriam longe”, disse. Mudou-se com Carla e Vitória Helena para Andradina (SP), então sede da empresa, a 700 quilômetros da capital paulista. Sofia Helena já nasceu lá.
Assis e Silva montou toda a estrutura jurídica do grupo – que chegou a 180 advogados contratados, fora os escritórios terceirizados. De lá para cá, esteve na linha de frente jurídica de todos os movimentos de aquisições e fusões que levaram o grupo dos Batista a ser o maior produtor mundial de proteína animal. Bem pago, cresceu junto com eles e amealhou, como contou, sólido patrimônio imobiliário. Doutorou-se em Direito, formou-se em Filosofia, fez MBAs no Brasil e no exterior. Acrescentou, também, com gosto, que leu a Bíblia três vezes, definindo-se como cristão.
“O bom observador não é surpreendido por nada”, disse o advogado sobre si mesmo. Foi por isso que registrou, com atenção, em 2015, o dia em que o Supremo Tribunal Federal decidiu que as doações eleitorais, até então autorizadas por lei, “atentavam contra o princípio da moralidade”, para usar a expressão que usou. Quando Joesley o chamou para conversar sobre este assunto – a JBS, afinal, era uma doadora por excelência – o advogado anteviu problemas. “O Joesley é que sabia de tudo, tinha coisas que nem o Wesley sabia, mas logo entendi que podia complicar”, disse.
Complicou quando a Operação Greenfield, da Procuradoria Regional da República na 1.ª Região – que investiga desvio em fundos de pensão –, estreitou o cerco contra a JBS. “Foi o procurador Anselmo Lopes (chefe da força-tarefa da Greenfield) que acordou o Joesley para a conveniência de contar o que sabia”, acredita Assis e Silva. Uma frase de Lopes foi fundamental, segundo ele: “Joesley, não se preocupe em enganar o Ministério Público, e sim em enganar a si mesmo”. Joesley resistiu – até capitular. Foi o advogado que ligou para Lopes, em 19 de fevereiro, informando que o empresário topara a delação, “isso no âmbito limitado da Operação Greenfield e de outras que investigavam a empresa”.
O âmbito passou do limite – como se viu – quando Lopes passou a bola para o entorno de Pelella e de Janot. “Delatar um advogado e um procurador da República foi a decisão mais demorada, mais problemática e mais sofrida que eu tomei na vida”, disse Assis e Silva. Na véspera, preferiu dormir sozinho em um hotel.
Multado em R$ 1,5 milhão, que está pagando em seis meses, ele anda com seguranças da empresa, mora sozinho em um apartamento confortável (tem dez televisões gigantes, entre ativas e ainda na caixa), e visita mensalmente a família, que foi morar em Nova York, a expensas suas e da JBS. “Mudou tudo, ainda estou processando a cabeça, mas fiz a minha parte”, disse o advogado da JBS.