Augusto Aras, procurador-geral da República, é o chefe máximo do Ministério Público no âmbito federal.| Foto: Evaristo Sa/AFP
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Há situações em que o descaso com o dinheiro público e a desconexão com a realidade de alguns órgãos da Justiça são tão gritantes que só podem causar indignação. Aprovada a toque de caixa no final do ano passado, uma resolução do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) permitirá que procuradores da República recebam mensalmente até R$ 11 mil a mais em seus salários – já muito acima da média dos brasileiros, que, segundo o IBGE chegou a R$ 2.787 no final do ano passado. A justificativa seria a necessidade de uma “gratificação por acúmulo de processos”, ou seja, de pagar um valor extra aos procuradores que tenham um grande número de processos sob sua responsabilidade.
A benesse já vinha sendo implantada desde julho de 2022, quando o procurador-geral da República, Augusto Aras, assinou uma recomendação do CNMP para que os procuradores tivessem direito a uma compensação mensal correspondente a 33% do salário – aproximadamente R$ 11 mil – para exercerem suas funções. Como se tratava de uma recomendação, os Ministérios Públicos poderiam ou não aplicá-la, mas, em dezembro do ano passado, na última sessão do ano, o CNMP aprovou uma resolução com o mesmo teor, tornando a gratificação praticamente obrigatória. A votação passou despercebida, uma vez que foi feita na mesma sessão que julgou antigos membros da Operação Lava Jato no Rio de Janeiro, alvos de um processo administrativo disciplinar (PAD) por supostamente terem cometido quebra de sigilo.
Se há desequilíbrio na distribuição de tarefas aos membros do MP, não é a concessão de prêmios a quem acumular mais processos que irá resolver o problema.
Agora, em 27 de janeiro, a resolução foi publicada e os Ministérios Públicos vinculados ao Ministério Público da União – o Federal, o do Trabalho, o Militar e o do Distrito Federal e Territórios – terão 90 dias para determinar o que consideram como “excesso de trabalho”, estipulando quantos processos cada promotor deverá ter para receber o benefício. A cada três dias trabalhados, os procuradores com “excesso de trabalho” ganharão um de folga, que poderá ser revertido em dinheiro. Assim, o recebimento extra poderá chegar a R$ 11 mil, elevando o vencimento dos promotores acima do recebido por um ministro do Supremo Tribunal Federal – teto máximo para a remuneração dos servidores públicos – que em 2023 passa a ser de R$ 41 mil.
Para o CNMP, a regra constitucional do teto salarial não precisaria ser aplicada porque o novo penduricalho seria uma “gratificação”. Causa estranheza tal entendimento, uma vez que o texto constitucional fala que a remuneração de ocupantes de cargos públicos deve ser contabilizada “incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza”. Juízes já possuem um benefício semelhante desde 2020, instituído por uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Mas a gratificação não pode furar o teto e só é aplicada quando o magistrado acumula varas distintas e processos durante férias de colegas.
Oferecer uma gratificação para quem acumula mais processos é uma forma de premiar e estimular a manutenção – mesmo que de forma não intencional – de um comportamento nocivo, a falta de celeridade ou mesmo de empenho, no desempenho da função de procurador. Além disso, o mero número de processos sob sua responsabilidade não pode ser considerado um fator que indique a sobrecarga de trabalho – há processos únicos cujo volume e complexidade exigem tanto ou mais do procurador quanto uma dezena de processos mais simples.
Lembremos que a função primordial do CNMP é o “controle da atuação administrativa e financeira do Ministério Público e do cumprimento dos deveres funcionais de seus membros”. Ora, aumentar os gastos dos MPs e institucionalizar o excesso de trabalho como uma forma de receber mais usando estratagemas que contrariam a Constituição não é, nem de longe, uma medida benéfica ao MP.
Se há desequilíbrio na distribuição de tarefas aos membros do MP, certamente não será a concessão de prêmios a quem acumular mais processos sobre a mesa que irá resolver o problema.
Gazeta do Povo