A história da separação dos Poderes se confunde com a história da evolução do Estado. Montesquieu, francês famoso por ter escrito “Espírito das Leis”, em 1748, descreveu com detalhes como deveria ser a separação dos Poderes estatais e o objetivo dessa divisão. O cerne da doutrina consistia em restringir o poder dos governantes e de quem detinha poder, inclusive de magistrados não eleitos diretamente pelo povo, garantindo assim as liberdades individuais — elemento essencial ao estado democrático e de direito. Sem liberdades individuais efetivamente garantidas inexiste estado democrático de direito.

Muito embora haja previsão expressa na nossa Constituição, sem margem para interpretação, na prática temos assistido uma lamentável quebra dessa regra em nosso país, na medida em que o Poder Judiciário —notadamente o Supremo Tribunal Federal— tem assumido preponderância frente aos Poderes Legislativo e Executivo, deturpando uma das características de uma República democrática: tripartição dos poderes como forma de garantir liberdades individuais e coletivas.

Vem justamente daí o sistema de freios e contrapesos — checks and balances — em que os Poderes mutuamente se controlam, limitando as atuações uns dos outros. Vejam que, na nossa República, o chefe do Executivo tem o poder de vetar projetos de lei já aprovados pelo Legislativo ou até mesmo editar medidas provisórias com força de lei. Já o Poder Judiciário, por sua vez, tem a prerrogativa constitucional de anular atos dos demais Poderes em casos de inconstitucionalidade. O Poder Legislativo, então, além de legislar e fiscalizar os demais poderes, julga o presidente da República, ministros de Estado, ministros do STF e também o procurador-geral da República em eventuais crimes de responsabilidade. Notem que, nessa dinâmica ideal, um poder controla o outro. Em suma, tudo com objetivo de evitar interferências e abusos, garantindo assim liberdades individuais e coletivas à população.

No Brasil, infelizmente, não tem havido o equilíbrio parcimonial e necessário entre Executivo, Legislativo e Judiciário e, a partir disso, uma série de eventos negativos à democracia brasileira tem acontecido, tendo o Judiciário como autor de exorbitâncias inomináveis. Para título de exemplo, cito o caso da decisão liminar exarada pelo ministro Luís Roberto Barroso, do STF, suspendendo a validade do piso salarial dos enfermeiros, licitamente aprovado pelo Congresso e sancionado pelo presidente da República. Inexistia qualquer questão constitucional em jogo e, portanto, não teria porque o STF estar jurisdicionando naquela matéria. Se não há questão constitucional, a atuação do Supremo foi ilegítima e intervencionista, o que contraria o principio da separação dos poderes.

Outro caso emblemático foi a suspensão da nomeação de Alexandre Ramagem para a Direção-Geral da Polícia Federal (PF), ainda em abril de 2020, cuja designação já havia ocorrido. Sob a estapafúrdia alegação de ter sido chefe da segurança de Jair Bolsonaro (PL) na campanha de 2018, Ramagem foi vetado pelo ministro Alexandre de Moraes, numa flagrante e indevida interferência do Poder Judiciário no Poder Executivo. Também é exemplo da indébita interferência do STF em outro Poder a suspensão das redes sociais de deputados federais, instrumentos sem os quais a própria atividade parlamentar fica alijada. Abuso flagrante que ainda não tínhamos assistido na história da República. Desprezar a separação dos poderes é atacar o estado democrático, porque um é consequência do outro.

Em 1748, quando foi publicado o “Espírito das Leis”, obra que defendia o liberalismo político e ideais republicanos (limitação dos poderes — ninguém acima da lei), muitos intelectuais, burocratas e membros da burguesia francesa foram contra o modelo de estado apresentado por Montesquieu. Todos eles queriam continuar com o sistema feudal, autocrata e absolutista, em que inexistia igualdade de tratamento entre as pessoas.

Os incontáveis casos de abusos e de decisões teratológicas, absurdas e contrárias ao interesse público têm chamado a atenção, ao menos de quem gosta e não abre mão de um estado democrático de direito de verdade. O notório ativismo judicial brasileiro, notadamente do STF, tem gerado grandes prejuízos ao país — alguns já irreparáveis. Por isso, a apatia de quem deveria frear e contrapesar as extravagâncias de abusadores está pondo em risco a separação dos poderes e, por consequência, a democracia brasileira padece, sofre, passa por péssima experiência que só será vencida com a atuação forte, equilibrada e corajosa de todos que realmente querem um Brasil melhor.