sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

'A morte do Carnaval', por Flávio Gordon

 

Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock/Cacique de Ramos/Agência Brasil


No permanente caos nacional, essa festa perdeu sua função ritualística, tornando-se ela própria a expressão acabada da ordem


“Você sabia que certas fantasias ridicularizam pessoas e culturas e pegam mal no Carnaval? Se não sabia, Professor Jero Explica. Siga o fio e confira o que você não deve vestir!” — tuitou recentemente o petista Jerônimo Rodrigues, governador da Bahia. E emendou: “Indígena não é fantasia Os povos indígenas lutam, diariamente, para ter seus direitos reconhecidos. É um desrespeito se apropriar de suas vestimentas e acessórios e transformar sua cultura diversa em um estereótipo”. E também: “Travesti não é fantasia Se vestir de mulher ridiculariza figuras femininas e ofende identidades travestis e transsexuais. Não tem graça, pessoal!”. E ainda: “Pessoas pretas não são fantasia. Usar maquiagens blackface, perucas e demais acessórios reforçam o racismo e a hiperssexualização da população preta. Vestir-se de “Nega Maluca”? Nem pensar!”.

Obviamente, na condição de representante do “intelectual coletivo” lulopetista, o político baiano não teria personalidade própria para tirar esse moralismo politicamente correto da própria cachola, estando apenas a reproduzir o clichê militante — reiteradamente propagandeado pelos justiceiros sociais das redações — da “apropriação cultural”, fetiche ideológico neomarxista segundo o qual há culturas “oprimidas” e “opressoras”, sendo vedado aos supostos representantes das segundas qualquer uso de elementos culturais pretensamente originários das primeiras. Desse identitarismo doentio e perverso, é bom lembrar, não escapou nem mesmo o Cacique de Ramos, tradicional bloco carnavalesco do Rio de Janeiro, acusado de “ofender” os índios. Não consta que algum índio de carne e osso tenha se mostrado ofendido ao longo dos 60 anos de existência do bloco. Mas profissionais da ofensa, como Jerônimo Rodrigues, não se vexaram em, apropriando-se culturalmente do juízo alheio, se ofender por eles.

Desfile do bloco Cacique de Ramos, em 2022
Desfile do bloco Cacique de Ramos, em 2022 | Foto: Divulgação

Bem, se há algo que me valeram décadas de estudo de antropologia — e não me valeram grande coisa — foi a aquisição de uma compreensão mínima de como funcionam os processos de contato cultural. E, numa ciência de poucas verdades absolutas estabelecidas — como soem ser as ciências humanas em geral —, ao menos uma posso afirmar sem grandes dúvidas: o conceito de apropriação cultural é algo totalmente sem sentido, simplesmente porque cultura é apropriação. Sendo vãs todas as tentativas de isolar uma cultura “pura”, solipsista e autoidêntica no decorrer do tempo, pode-se dizer que, ao fim e ao cabo, cultura é o nome que damos ao contato cultural.

A realidade brasileira já é tão perpetuamente caótica, os papéis sociais tão mal definidos e as hierarquias institucionais tão indignas de respeito, que a subversão carnavalesca da ordem perde o sentido

Esse caráter essencialmente anti-identitário dos processos culturais espontâneos sempre foi evidenciado no Carnaval, que pode ser definido como uma festa cujo sentido é justamente a subversão ritualizada de identidades, hierarquias e papéis sociais habituais. Na Idade Média, o estilo caracteristicamente burlesco do evento, que constrastava com o tom grave e solene da liturgia oficial, bem como com a contrição do período quaresmal subsequente, era parte de uma longa tradição popular. Na Europa medieval, além do Carnaval propriamente dito, celebrava-se uma série de outras festividades estruturalmente idênticas, a exemplo da “festa dos tolos” (festum stultorum) ou da “festa do asno” (festum asinorum). Quase toda igreja promovia festejos paroquiais nos quais esse aspecto visceralmente cômico — literariamente consagrado na obra de um François Rabelais — dava o tom. Nas feiras ao ar livre, o público era brindado com uma variedade de atrações circenses, com a participação de anões, gigantes, palhaços, figuras mascaradas e feras amestradas. Nessas ocasiões, ritos solenes, como a coroação de reis ou a consagração de cavaleiros, eram parodiados, arrancando gargalhadas da audiência. No Entrudo português — antepassado direto do nosso Carnaval —, encenava-se uma “guerra” na qual os foliões se atingiam mutuamente com água, farinha, ovos e limões (vem daí, a propósito, a tradição brasileira do lança-perfume).

Cena de entrudo em 1880, em desenho de Angelo Agostini
Cena do Entrudo, em 1880, em desenho de Angelo Agostini | Ilustração: Reprodução

No campo da sociologia e da antropologia, há uma vasta literatura demonstrando o caráter invariavelmente satírico e subversivo do rito carnavalesco, cuja ênfase recai sobre a suspensão momentânea de hierarquias, status e posições sociais, e, sobretudo, sobre o instituto da inversão de papéis (entre homens e mulheres, ricos e pobres, patrões e empregados etc.). Com efeito, desde as Saturnais romanas — festividades nas quais, excepcionalmente, os escravos eram servidos por seus mestres, passando pelas festividades medievais supramencionadas, com seus reis momos, cavaleiros de taverna e travestis (tanto masculinos quanto femininos) —, o Carnaval tem se constituído como celebração de um tempo excepcional em que a ordem habitual é ritualisticamente (e, pois, controladamente) desafiada, para voltar a se afirmar da Quarta-Feira de Cinzas em diante.

O que se passa no Brasil de hoje é que, por um lado, os fanáticos identitários que hoje ocupam posições de poder e influência na sociedade civil e no Estado avançam sobre a irreverência carnavalesca e interditam a função ritualística da festa. Tratando-se de uma festa contraidentitária por excelência, o identitarismo é a morte do Carnaval. Por outro lado, a realidade brasileira já é tão perpetuamente caótica, os papéis sociais tão mal definidos e as hierarquias institucionais tão indignas de respeito, que a subversão carnavalesca da ordem perde o sentido. Na ausência de uma ordem reconhecível a se transgredir, resta a transgressão como fim em si mesmo. Na ausência da desordem ritualizada e com data para acabar, resta o caos permanente e estrutural. Afinal, que potência burlesca teria o travestismo num país em que um parlamentar é processado por chamar um homem (que se pretende mulher) de “ele”? Que autoridade oficial haveria por subverter num país em que os narcotraficantes já a ignoram solenemente? Que hierarquias há por quebrar num país em que alunos quebram a cabeça dos professores? Que poder constituído ainda resta a ridicularizar num país que aceita um ex-condenado por corrupção na Presidência da República? Que paródia restaria fazer de magistrados num país em que eles se reúnem com influencers de cabelo rosa e frequentam encontros do MST? Que alusão momesca sobrevive a uma realidade que torna crime chamar de comunista obeso um comunista obeso? Não, no Brasil já não há um contraste claro entre o tempo extraordinário do Carnaval e o tempo ordinário que ele viria a subverter. No permanente caos nacional, o Carnaval perdeu sua função ritualística, tornando-se ele próprio a expressão acabada da ordem. Uma ordem totalitária que nos obriga — nós, os mais de mil palhaços no salão — a transigir com o mal e reverenciar o ridículo. Quanto riso, oh, quanta alegria…

Bloco Virgens da Asa Norte
Bloco Virgens da Asa Norte | Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

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