sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

'Os bastidores de Janja no carnaval da Bahia', mostra Paula Polzonoff Jr.

 

Gilberto Gil no meio de três mulheres, entre elas Janja: por que todo mundo está com camisas da campanha do Bolsonaro?| Foto: Reprodução/ Twitter


Por Athayde Petreyze, esquire*


Sexta-feira. Noite. Dois Dragões da Independência tocam as trombetas que anunciam a entrada da Excelentíssima Primeira-dama Janja da Silva, a.k.a. Janja (pronuncia-se à francesa: Jânjáh) no recinto. Trajando um vestido assinado por algum estilista militante cujo nome não ouso mencionar para não correr o risco de errar os pronomes, feito com materiais exóticos por mãos de minorias, e comprado numa boutique da Oscar Freire pela bagatela de [DADOS MANTIDO EM SIGILO POR CEM ANOS] reais, ela entra e:

- Proletários do mundo, arrumem minhas malas e mandem o piloto do avião presidencial ligar as turbinas! Sextou e eu tô indo pra Bahia! – grita ela, tão elegantemente quanto possível.


Sábado. Manhã. Enquanto toma seu delicioso café, Janja recebe dois integrantes da Equipe Permanente de Marketing do Partido dos Trabalhadores. Visivelmente irritada e desconfiada de que foi Gleisi Hoffmann quem mandou os publicitários atrapalharem seu desjejum à base de acarajés, vatapás, cururus e mungunzás e um umbu pra ioiô, Janja ouve as instruções que parecem entrar por um ouvido e sair pelo outro.

- Não pode isso? Ai, que gente reacionária! – diz ela aqui e ali, enquanto os marqueteiros a instruem a:

(i) não se deixar fotografar sob o efeito de álcool;

(ii) não usar roupas muito reveladoras;

(iii) não vestir fantasias que possam ferir suscetibilidades, tais como [e aqui eram tantas as fantasias proibidas que Janja teve tempo até de ir ao toilete enquanto os marqueteiros falavam];

(iv) não cantar músicas do Ultraje a Rigor, nem que seja em ritmo de marchinha;

(v) nem pensar em cumprimentar um membro da família Odebrecht, hein!


Janja assina um papel com a logomarca do PT. Acho que é um termo de compromisso. E, subindo – literalmente – nas tamancas Hermès feitas de ipê-rosa apreendido pelo Ibama, couro de mico-leão-dourado e cola natural à base de lágrimas de político em tragédias naturais com potencial eleitoral, diz:

- Agora me dá licença que eu quero cair na gandaia.

Sábado. Tarde. Janja cai na gandaia. Mas não pense que é assim fácil. Afinal, estamos falando da nossa primeira-dama. Uma socióloga de respeito, formada na mesma alma mater de Leandro Narloch e deste que vos fala, a UFPR de tantos porres e tantas ilusões deixadas pelo caminho. Mas me perdi aqui. O que é que eu estava falando mesmo?Ah, sim. Janja. Enquanto pula ao som de clássicos do cancioneiro popular como “arerê, um lobby, um hobby, um love com você”, a primeira-dama sempre arruma um tempinho para descer do trio elétrico e ler Marx, Rousseau e Nietzsche.

- Saúde! – diz ela, como se ouvisse meus pensamentos.

- Não, Janja. Eu estava explicando aos leitores que você...

- Senhora!

- ...que a senhora gosta de ler autores clássicos & profundos entre uma música da Ivete Sangalo e outra.

- E da Claudia Leite também! Bota aí que eu ouço Claudia Leite senão ela fica chateada. Sobre os livros, tipo assim, o comunismo e o niilismo me ajudam a relaxar – diz.


Sábado. Noite. Janja liga para o marido e os dois discutem longamente a Guerra da Ucrânia e as mudanças climáticas.


Domingo. Manhã. Hora de prestar homenagem a Gilberto Gil. Vamos, Janja. Acorde!

Domingo. Final da manhã. Janja acorda reclamando da assessora por ter perdido a hora. A assessora explica que tentou de tudo: despertador, vuvuzela, bateção de panela, água no rosto. Janja olha em minha direção esperando que eu confirme ou negue a história da assessora, mas digo que sou apenas um jornalista com um olhar objetivo e imparcial sobre os fatos.

- Ah, você é petista, né? Bem que eu desconfiava – diz a primeira dama. Não nego. Apenas registro a fala dela no bloquinho cheio de anotações objetivas e imparciais e, assim à toa, lembro que estamos atrasados para a visita ao camarote da família Gil.

Antes de sairmos, ela liga para Djamila Ribeiro e as duas ficam lá discutindo a questão racial no Brasil enquanto o octogenário Gilberto Gil espera.


Domingo. Tarde. Janja finalmente chega à casa dos Gil. O porteiro não a reconhece e por isso há um princípio de tumulto. Janja diz que isso é um absurdo, uma ameaça à democracia, que vai chamar o Alexandre de Moraes, etc. O porteiro faz o L (assim meio deitado, mas tá valendo) e a deixa subir. Janja é recebida por Gil, que aparentemente estava no meio de um solilóquio sobre a importância do carnaval na luta contra o conservadorismo.

- Ou não – conclui ele depois de um monólogo de meia hora.

É a deixa para Janja pedir que o ídolo pegue o violão e lhe cante alguma coisa antes da foto para viralizar no Instagram. Enquanto Gil vai buscar o violão, Janja e a ex-ministra da Cultura Flora Gil tricotam.

- Menina, você não sabe quem conseguiu autorização pra captar R$5 milhões!

- Não sei! Me diga!

- A Cláudia Raia!

- Mas não é possível! Sabia que ela apoiou o Collor em 1989?

- Menina, nessa época eu nem era nascida!

E caem na gargalhada. Gilberto Gil volta e começa a tocar o clássico “Minha Nega na Janela”. O espetáculo particular, porém, é interrompido por uma ligação do ministro Silvio Almeida, que pede pelamordedeus! pare com essa música agora! Submisso às ordens do Partido, Gil obedece. Sem se dar por vencida, Janja insiste e tenta puxar o coro:

- A paz/ invadiu o meu coração...

Domingo. Noite. Janja se esbalda de tanto pular o carnaval. Aqui e ali, porém, ela para a fim de atender o telefone. A primeira-dama está sempre atenta aos problemas do Brasil, como a transposição do rio São Francisco, o genocídio yanomami, os bilhões, trilhões, zilhões de famintos – e, claro, a reforma no Palácio do Planalto que certas pessoas deixaram i-na-bi-tá-vel.

No intervalo da folia, Janja recebe súditos que lhe beijam a mão e lhe pedem pequenos favores imperiais que ela, olhando para um lado e para o outro para se certificar de que não tem ninguém da Lava Jato por perto, republicanamente nega. E aqui não tenho culpa se você se decepcionou porque esperava um escândalo de corrupção fictício e provavelmente calunioso, difamatório e injurioso. Não sou desses.


Segunda. Manhã. Janja ainda deve estar dormindo. Não sei. Não levantei ainda.

Segunda. Tarde. Começam a surgir histórias de que houve um temporal em São Sebastião, litoral norte de São Paulo. Morreram umas cinquenta pessoas. O marido a essa hora já deve estar lá andando de helicóptero e posando para fotos, registrando para a posteridade toda a sua empatia. Janja, o cenho franzido quando a manicure lhe arranca um bife, pergunta aos assessores se ela deve se manifestar e, se sim, a que horas chega o cabeleireiro. Ela folheia um velho número de uma famosa revista de celebridades.

- Que saco! Bom, ossos do ofício. Só não me peçam pra interromper o carnaval! – E se virando para mim: - Não vai escrever lá no jornal que eu tô lendo Caras, hein! Diz que eu tô lendo... Alguém aí sabe o livro da moda? Bacurau? Não, não. Bacurau eu acho que é filme. Como é o nome daquele outro?

- "Tudo é Rio" - diz um assessor. - Escreve que ela tá lendo "Tudo é Rio".

Então tá. Janja, leitora insaciável, devora “Tudo É Rio”, de Carla Madeira, e sentencia:

- Pode pôr aí que eu disse que é a melhor obra da história da literatura universal de todos os tempos.


Segunda. Noite. Janja recebe um relatório da Abin que mostra uma queda abrupta em sua popularidade. Tudo porque ela se recusou a ajudar na limpeza das casas enlameadas em São Sebastião.

- Liga pra Mônica [Bergamo, aquela]. Pergunta se é verdade.

Alguém liga e a Mônica [Bergamo, aquela] diz que é verdade. Janja, então, se reúne às pressas e a portas fechadas com um comitê de crise. Não me deixam entrar, mas grudo minhas orelhas como se fosse ventosas contra a madeira e lá de dentro escuto alguém perguntar:

- “País” é com “z” ou com “s”?

Depois:

- Põe assim, ó: “me enche de tristeza e angústia”. As pessoas gostam desse negócio de angústia. Tá na moda.

Não demora e vejo pelo Twitter o que a equipe de comunicação escreveu para a primeira-dama: “Estive muitas vezes no litoral norte de São Paulo, um dos cantos mais lindos do nosso país. Ver as praias e morros desfigurados, as pessoas sofrendo, me enche de tristeza e angústia. A superação deste momento tão difícil para o litoral de SP, em especial São Sebastião, virá com união de esforços do Governo Federal, Estadual e municipais. O Presidente Lula está lá para reforçar esta mensagem. Toda minha solidariedade às famílias atingidas por este desastre”.

A ambiguidade final me desnorteia. A que desastre ela se refere? Será uma crítica velada ao marido? Será que rende manchete e escândalo? A porta se abre e Janja se prepara para continuar exibindo toda a sua solidariedade no trio elétrico.


Segunda. Quinze minutos mais tarde. Esta reportagem fictícia acaba com o repórter deprimido por ter de explicar que é fictícia. Bom, a maior parte.


* Athayde Petreyze é colunista social, terapeuta holístico, árbitro de sumô e psicanalista da linha trotskista ortodoxa. Seu livro de poesias “O Parque de Diversões dos Substantivos Abstratos”, com prefácio de Fernando Pessoa (psicografado), não lhe rendeu nada além de dor de cabeça e zoação dos amigos. Membro honorário da velha guarda da Unidos do Bairro Alto, ele provavelmente terceirizou essa reportagem para um estagiário.


Paulo Polzonoff Jr. é jornalista, tradutor e escritor


Gazeta do Povo