sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

'A mais previsível tragédia', por Edilson Salgueiro

 

Agentes da PM, Bombeiros, Defesa Civil e Exército atuando em resgates em São Sebastião (21 de fevereiro de 2023) | Foto: Governo do Estado de São Paulo


Tempestades brutais, deslizamentos de morros, casas destruídas e estradas em escombros reprisam em escala portentosa no litoral norte de São Paulo o drama de todos os verões


Foram 13 horas seguidas de chuva e deslizamentos de terra. Milhares de árvores desceram das encostas dos morros e varreram casas, veículos e galpões. A região ficou ilhada por três dias, sem alimento nem luz.

Essa não é a história da catástrofe que abateu o litoral norte paulista no fim de semana passado. Ela se refere à maior tragédia natural do país, ocorrida em 24 de janeiro de 1967, na Serra das Araras (RJ). Ali morreram aproximadamente 2 mil pessoas.

De lá para cá, diversos desastres naturais ocorreram em território brasileiro. O mais recente devastou São Sebastião, Caraguatatuba, Ilhabela, Ubatuba e Bertioga. Desde 18 de fevereiro, quando o temporal inundou as cidades, foram contabilizados até agora 50 mortos e mais de 40 desaparecidos.

Ninguém previu a dimensão da tragédia. Naquela manhã, antes de se aventurar pelo mar de Toque-Toque Grande, em São Sebastião, um morador consultou um aplicativo meteorológico para verificar a probabilidade de chuva no município. “O app informou que cairiam 40 milímetros de água”, disse, ao acrescentar que essa quantidade não seria suficiente para deixar a população apreensiva. Dois dias antes, em 16 de fevereiro, a Defesa Civil mandou por e-mail um alerta “vigente até domingo”, com previsão de chuvas intensas para regiões do Estado de São Paulo. “Destaque e atenção para o litoral norte, que pode registrar acumulado de até 250 milímetros”, afirmava a mensagem.

Naquele dia, 630 milímetros de chuva caíram em São Sebastião. Isso significa que 630 litros de água — ou mais de 30 galões de 20 litros — foram despejados em cada metro quadrado de terra. A partir daí, a mobilização começou. A Defesa Civil decretou estado de calamidade pública no domingo 19, e o governador de São Paulo, Tarcísio Gomes de Freitas, solicitou o apoio das Forças Armadas. O Comando Militar do Sudeste disponibilizou aeronaves para socorrer as vítimas, enquanto os técnicos do Batalhão de Engenharia de Pindamonhangaba (SP) trabalharam para desobstruir a Rio–Santos.

Caos nas cidades

Mais de cem policiais militares do Corpo de Bombeiros atuaram em São Sebastião, Ilhabela, Ubatuba, Baixada Santista, Caraguatatuba, Bertioga, São Vicente e Praia Grande. A megaoperação do governo paulista também recebeu a ajuda da Coordenadoria Estadual da Defesa Civil, que desenvolveu uma estratégia para distribuir colchões, cobertores, kits de limpeza e cestas básicas aos municípios afetados pelo temporal. Diversas regiões ficaram sem abastecimento de água, porque a tempestade arrastou lama, pedra e tronco — o que reduziu a vazão de água tratada nas estações.

Em Toque-Toque Grande, o dilúvio provocou um fenômeno chamado cabeça-d’água. Isso ocorre quando o fluxo de água corrente numa queda d’água aumenta exponencialmente. A cachoeira da Toque-Toque Grande tinha um vão visual de 5 metros quadrados. Os transeuntes podiam ver apenas um fio de espuma branca descer do topo, localizado a 100 metros de altura. A torrente abriu um espaço de 40 metros quadrados, arrastando pedras e árvores. Apesar dos estragos ambientais, não houve mortos naquela localidade.

A cabeça-d’água abriu 35 metros de vão visível na cachoeira de Toque-Toque Grande | Foto: Governo do Estado de São Paulo

Moradores de outras áreas de São Sebastião não tiveram a mesma sorte. No bairro de Itatinga, por exemplo, as chuvas inundaram casas e arrastaram automóveis. A população teve de ser levada para um abrigo provisório na Escola Municipal Patrícia Viviani, que recebeu doações de 50 toneladas de alimento. Em Juquehy, a lama invadiu as residências. E as linhas de transporte pararam de funcionar, porque houve erosão nas vias de acesso.

A funcionária de uma casa de veraneio na Praia da Baleia estava trabalhando quando recebeu a notícia de que uma árvore caíra sobre sua residência. O meio-irmão de sua neta, um bebê de 9 meses, morreu logo depois do impacto. Alguns parentes ficaram debaixo dos escombros durante horas, mas sobreviveram. O bebê foi sepultado na terça-feira 21.

Também na Praia da Baleia, o porteiro de um condomínio de luxo viu sua casa ser destruída por um deslizamento. O desastre matou seu irmão, sua sobrinha, o marido dela e o filho. Na quarta-feira 22, ele foi ao Instituto Médico-Legal (IML) liberar o corpo do irmão.

A empresária Varna Michelon, 54 anos, conta que jamais presenciou um momento tão catastrófico quanto o verificado em São Sebastião. “Havia um rastro de terra vermelha na praia, o cenário era devastador”, afirmou, ao ressaltar que frequenta a região há mais de 20 anos. “Ao caminhar pela cidade, vi carros boiando e casas destruídas.”

Estradas destruídas

A tempestade provocou a interdição parcial da Rodovia dos Tamoios, no domingo. O mesmo ocorreu em trechos da Rio–Santos, em Ubatuba, e também na Mogi–Bertioga, que sofreu com alagamentos. Nesta última, a desobstrução completa deve levar seis meses.

Vídeos divulgados pelo Departamento de Estradas de Rodagem de São Paulo e pelo governo do Estado mostram a destruição da Rio–Santos, que liga a capital fluminense à Baixada Santista. Houve deslizamento de terra e queda de barreira no quilômetro 174, na região de Juquehy. Nas imagens, é possível observar o tamanho dos danos.

O engenheiro Delson Amador, secretário de Transportes e Vias Públicas de São Bernardo do Campo (SP), disse que as obras na Mogi–Bertioga devem demorar para ser concluídas, por causa dos estragos sofridos. De acordo com o especialista, os deslizamentos nessa pista são piores, em razão dos morros que a contornam. “Eles se formam basicamente de argila e cobertura vegetal”, explicou. “Essa característica é suscetível a precipitações.”

Amador disse que rodovias como a Anchieta, por exemplo, foram construídas com uma tecnologia antiga. Diferentemente de outras mais modernas, a Anchieta segue o contorno da Serra do Mar. Ela fica “espremida” entre o oceano e o morro. “A Rodovia dos Imigrantes foi construída com uma tecnologia mais avançada”, disse. “É feita principalmente de túneis e viadutos. Quase não há trechos que acompanham a Serra do Mar. Há deslizamentos, mas não atingem a pista. O trecho mais moderno da Mogi–Bertioga não sofre impacto. Mas os antigos são suscetíveis a precipitações.”

O secretário de Transportes e Vias Públicas de São Bernardo do Campo disse ainda que os R$ 7 milhões destinados pelo governo federal não devem ser suficientes para reparar os estragos causados pelos deslizamentos.



Uma tragédia pronta para acontecer

Segundo o geógrafo Éder Diego Lima, da Universidade de São Paulo (USP), o litoral norte paulista apresenta condições propícias para a ocorrência de desastres naturais. “O relevo é íngreme, há intenso processo de desmatamento das encostas e existe exposição do solo a riscos, visto que, quando os terrenos ficam úmidos, deslizam em grandes volumes de massas e carregam tudo que encontram pela frente”, observou. “Basta um olhar mais atento para percebermos que estamos diante de uma tragédia pronta.”

Existem dois tipos de ocupação nas cidades litorâneas. No primeiro, em relevos planos, há majoritariamente casas de veraneio. No segundo, por sua vez, as construções estão nas encostas, onde há maiores riscos. É nessas áreas que os prestadores de serviços instalam suas residências, visto que os custos são menores.

Caminho do deslizamento de terra | Foto: Governo do Estado de São Paulo

Para Amador, é necessário remover as famílias que moram em áreas de risco. “Não há outra solução imediata”, argumentou. “É preciso preservar a vida dos cidadãos. E a solução definitiva depende da administração pública. É necessário priorizar os investimentos naquelas áreas.” Na quarta-feira 22, a Justiça de São Paulo autorizou a remoção forçada de famílias alocadas em regiões de risco para “abrigos seguros”. A decisão atende a um pedido da Procuradoria-Geral do Estado.

O problema das construções em áreas de risco é antigo. Reportagem da Folha de S.Paulo de 1998 destacou que, na época, a ocupação desordenada já ameaçava o litoral norte paulista. “Os principais motivos da degradação, segundo especialistas, são a ocupação desordenada de terras, a superpopulação na temporada, os depósitos irregulares de lixo e a contaminação dos lençóis freáticos”, diz o texto. São Sebastião, Ubatuba, Ilhabela e Caraguatatuba tinham pelo menos 1,4 mil moradias em pontos de risco, áreas verdes e de preservação. Hoje, o número é superior a 2 mil.

Em 2015, o então secretário do Meio Ambiente de São Sebastião, Eduardo Hipólito do Rego, também ressaltou a importância de acabar com as ocupações irregulares. “As invasões são fruto de um fenômeno social de migração, que teve ápice na década de 1990”, observou, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo.

Rego disse que as invasões ocorreram depois da construção de condomínios luxuosos. “Ou seja, gente de alto poder aquisitivo se instalou e precisou cada vez mais dos serviços prestados por quem se dependura nas encostas da Serra do Mar”, afirmou. “O litoral norte é um terreno fértil para ocupações desordenadas. “Em 48 horas, um invasor desmata, constrói um barraco e coloca uma criança de colo dentro. O loteador clandestino (aquele que ergue uma casa num terreno irregular para lucrar com isso), que para mim é a raiz do problema, tem de ir para a cadeia.”

O crescimento desordenado com a ocupação de morros na Vila do Sahy, uma das regiões mais afetadas pelo desastre da última semana, era alvo de preocupação do Ministério Público havia algum tempo. Em 2021, o MP Estadual processou a prefeitura do município e cobrou a regularização da área. “A ausência de ação fiscalizatória do Poder Público Municipal permitiu a ocupação e a expansão desenfreada do núcleo”, sustentou o órgão, na época.

Área atingida pela chuva no litoral norte de São Paulo | Foto: Governo do Estado de São Paulo

A Vila do Sahy é uma área “congelada”, isto é, em que não pode haver mais ocupações. O congelamento ocorreu em 2009, quando a prefeitura de São Sebastião assinou um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) com o Ministério Público. Na ocasião, a administração municipal se comprometeu a regularizar a área em até dois anos. Mas isso não ocorreu. É o que motivou a ação do MP Estadual, em março de 2021.

Mais de 50 anos atrás, na Serra das Araras, o cenário era o mesmo. Ao lado da Via Dutra, que estava sendo duplicada, a Empresa Metropolitana de Terraplanagem construiu um alojamento com capacidade para abrigar 300 moradores. Os operários que trabalhavam na estrada preencheram todas as vagas. No dia da catástrofe, 150 foram soterrados. A estimativa é que cerca de 1,4 mil corpos ainda estejam soterrados no entorno.

Em 24 de janeiro de 1967, choveu 275 milímetros durante três horas ininterruptas na Serra das Araras. Isso é três vezes mais que o verificado no fim de semana passado em São Sebastião — 630 milímetros em 24 horas. Esses desastres, ocorridos num espaço de meio século de diferença, representam um problema histórico.

Há uma semana, Tarcísio de Freitas disse que pretende usar a tragédia em São Sebastião para elaborar um “plano modelo” de prevenção de desastres naturais. Ele vai propor, entre outras coisas, o aprimoramento do sistema de alertas via SMS; a instalação de novos radares meteorológicos em zonas de risco; a capacitação de municípios para enfrentar problemas climáticos; o treinamento da Defesa Civil e de primeiros socorros em escolas, a fim de conscientizar as crianças sobre planos de fuga; e a realização de obras estruturais nas rodovias.

A esperança dos moradores da região é que, desta vez, as promessas saiam do papel. Assim como em todos os verões, no de 2024 também vai chover. E a possibilidade de outra tragédia já está anunciada.

‘Não é culpa do aquecimento global’

De acordo com o cientista Ricardo Felício, mestre em meteorologia e professor-doutor de climatologia pela USP, o dilúvio no litoral norte paulista ocorre em razão de fenômenos naturais. “Essas chuvas são normais nesta época, e entre cinco e dez anos temos esses eventos mais intensos”, ressaltou. “O ar quente e úmido que estava sobre os Estados do Sul e do Sudeste fornecia as condições ideais para desencadear a precipitação.”

Felício também rechaçou a hipótese de as fortes chuvas serem provocadas pelo aquecimento global e explicou o trabalho dos radares meteorológicos. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Existe relação entre as chuvas no litoral paulista e o aquecimento global?

Absolutamente nenhuma. Essas chuvas de verão podem se tornar mais intensas pelo quadro meteorológico que se apresentar na ocasião. No caso específico, temos uma situação de alta umidade do nosso verão, com a combinação de uma passagem de frente fria bastante lenta. Tal situação, aliada ao efeito da orografia [estudo das nuances do relevo de alguma região] presente nos Estados que vão do Paraná ao Rio de Janeiro, permite a ocorrência desses eventos. A partir de uma determinada quantidade de precipitação, o solo passa a não drenar toda a carga de água recebida. Assim, começam os escorregamentos, não interessando se a área é vegetada ou não. Tudo vem abaixo.

Eventos dessa magnitude ocorrem com que frequência?

Na região determinada por esses Estados, em geral, entre cinco a dez anos. A magnitude pode variar, pois depende destes determinantes que avaliamos anteriormente. Se a frente fria passar mais rápida ou for mais fraca, se a umidade disponível for menor, entre outros.

Nesse caso, os meteorologistas e as autoridades podem atuar apenas para conter os danos, visto que esses fenômenos vão ocorrer naturalmente?

Existem três formas de atuação: prognosticar o quadro meteorológico em uma escala maior, ou seja, o Brasil; depois, avaliar a escala regional, com as suas particularidades. Essa fase inicial é a mais importante, porque dela dependem as demandas de Defesa Civil, da emissão dos alertas, do isolamento e da evacuação de áreas de alto risco. O segundo passo é o monitoramento do fenômeno em si, e a emissão de alertas de curtíssimo prazo, que servem para dar cobertura extra onde houver necessidade. Finalmente, o terceiro passo é pós-evento, quando as coisas já aconteceram. Nessa situação, avaliam-se todo o quadro, os acertos, os erros, além de dar cobertura extra caso ainda haja resquícios do fenômeno e agentes de campo em trabalhos de resgate.


Com reportagem de Artur Piva

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