sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

'A esquerda agora quer censurar a ciência', afirma Dagomir Marquezi

 

O julgamento de Galileu, em Roma, 1633 | Pintura: Everett Collection/Shutterstock


Não basta controlar o que podemos fazer e pensar: os “progressistas” agora querem paralisar a ciência e a tecnologia


Em 1811, um grupo de artesãos decidiu que os culpados pelo crescente desemprego entre eles eram as máquinas têxteis. À noite, esses rebeldes saíam mascarados quebrando maquinário em várias cidades inglesas. A esperança deles era brecar qualquer avanço tecnológico e garantir assim seus empregos, tentando permanecer no século 18 para sempre.

O líder desses bandos era um tal de Ned Ludd, conhecido como Rei Ludd. Ninguém sabe até hoje se ele existiu de verdade. De qualquer jeito, seus seguidores ficaram conhecidos como os luditas. Desde esse início do século 19, ludita é o nome que se dá a quem quer interromper a evolução tecnológica e científica.

Os “ludistas” eram artesãos ingleses do início do século 19. Ao ver que iriam perder seus empregos, eles partiram para destruir as máquinas têxteis | Ilustração: Reprodução/Mary Evans Picture Library

Hoje, em plena segunda década do século 21, os luditas estão de volta. Com algumas diferenças. Eles não querem apenas destruir os frutos da tecnologia. Pretendem abortar as novidades antes mesmo que nasçam. E não agem apenas pela própria sobrevivência profissional, mas por uma agenda ideológica “progressista”. Querem, como sempre, salvar o mundo. E como sempre acham que o caminho é controlar, censurar e isolar quem não obedece a eles.

Ronald Bailey, escritor especialista em ciência, escreveu um longo artigo para a revista Reason anunciando que temos de enfrentar mais uma sigla na floresta de abreviaturas autoritárias. A nova sigla é RRI: “responsible research and innovation”, ou “pesquisa e inovação responsáveis”.

Capa da matéria de Ronald Bailey para a revista Reason | Foto: Reprodução

“Ciência melhor”

O movimento RRI hoje tem um site próprio (financiado pela União Europeia) muito completo, em que são oferecidos instrumentos para quem quer, por exemplo, implantar numa universidade um “plano de igualdade de gêneros e um código de integridade de pesquisas”. Os alvos deles são “pesquisadores, políticos, representantes da sociedade civil, educadores e inovadores”. Eles disponibilizam cartilhas do tipo “como iniciar RRI em nível nacional” ou “como incorporar RRI em instituições de ensino avançado”. Palestras, contas em redes sociais, vídeos didáticos, conferências internacionais, programas para influenciar acionistas de empresas, tudo está incluído e pago no pacote de aparelhamento.

Noam Chomsky, admirador confesso das ditaduras da Venezuela e Cuba, atacou recentemente a plataforma de linguagem ChatGPT, que ele acusou de promover “plagiarismo high tech

O site oferece inclusive uma apostila de “autorreflexão”, para que o usuário se convença de que o caminho que eles oferecem é o mais “justo e igualitário”. Segundo a apostila, o objetivo do RRI é “engajar todos os atores (de pesquisadores individuais a instituições e governos) (…) e se alinhar a valores, necessidades e expectativas de um grande público. Isso não só vale a pena ética e socialmente, mas também produz melhor ciência, tornando as agendas de pesquisa mais diversificadas e levando em conta as complexidades do mundo real”. Uma pergunta básica não é respondida: quem decide o que é uma “ciência melhor”?

Segundo Ronald Bailey, alguns desses entusiastas do RRI defendem a “inovação lenta” na ciência e até algo que eles chamam de “estagnação responsável”. Um dos adeptos dessa linha de ação, o professor britânico Bernd Carsten Stahl chegou a dizer, em 2020: “Nós devemos perguntar se as tecnologias emergentes podem e serão percebidas como uma ameaça de um nível similar à ameaça atual do vírus da covid”. Ou seja, o professor Stahl compara novas tecnologias com uma pandemia mortal. Ele sugere que, se for esse o caso, pode ser necessária uma “intervenção radical”. O que ele quis dizer com essa expressão? Não sabemos.

Os perigos da microeletrônica

Segundo o artigo de Ronald Bailey para a Reason, a origem do RRI está num livro escrito pelo químico britânico David Collingridge, em 1980. O título não poderia ser mais explícito: O Controle Social da Tecnologia. Collingridge dizia que “as consequências de uma tecnologia não podiam ser previstas no início de sua atividade. No momento em que as suas consequências indesejáveis são descobertas, a tecnologia é geralmente uma parte tão grande de toda a fábrica econômica e social que seu controle se torna extremamente difícil”. Collingridge chamava esse seu desejo de controle prévio de atividades de pesquisa de “entrincheiramento”. Seus seguidores usam outro nome: “trancamento”.

PT censura Revista Oeste
Ilustração: Jorm S/Shutterstock

Collingridge citava como exemplos de ciência dando errado “a medicina moderna e a higiene reduzindo a mortalidade em países em desenvolvimento, mas fazendo isso gerou um crescimento incontrolável da população”. Outro exemplo similar dado por ele se referia ao uso de química na produção de comida, que causaria “danos ao solo e seu ecossistema de apoio”.

Segundo o raciocínio causa e feito de Collingridge, o sabonete e a pasta de dentes não deveriam existir, para evitar assim a explosão populacional. O professor britânico já falava, em 1980, dos “perigos da microeletrônica”, que provavelmente destruiria empregos. Não passava na sua cabeça que milhões de outros empregos seriam criados.

Um mundo sem carros

Outro exemplo de militante RRI citado pela Reason é a autora Sheila Jasanoff, no seu livro The Ethics of Invention, de 2016, em que ataca a existência dos automóveis: “O carro abria imensas possibilidades de liberdade e produtividade individual, mas que traziam consequências drásticas para a sociedade que ninguém havia imaginado ou regulado em tempo hábil. Os carros causaram mais de 1 milhão de mortes no trânsito em todo o mundo a cada ano, a disseminação das práticas de trabalho rotinizadas e mortíferas, a praga da poluição urbana, a fragmentação das comunidades, a decadência dos outrora grandes centros industriais e, eventualmente, a mudança climática, que ameaça o mundo. As práticas atuais de inovação responsável e governança antecipada poderiam ter mudado a maré da história do automóvel antes que ele tomasse um rumo trágico?” Henry Ford teve sorte que a patrulha RRI ainda não existia em 1908.

No seu artigo para a Reason, Ronald Bailey mostra como a evolução pode vir de maneira simples, desde que os notórios donos da verdade não atrapalhem. Em 1908, por exemplo, a Real Comissão Britânica condenou o crescente uso de automóveis por causa da poeira que eles levantavam. Mas não propuseram a extinção do “carro a motor”, e sim uma solução concreta e prática para diminuir a poeira — asfaltar as ruas.

De volta à caixa de Pandora

Hoje, os carros elétricos e autônomos (sem motoristas) estão sendo massacrados diariamente pela turma do RRI. Todos os dias a imprensa distribui notícias ruins e previsões tenebrosas sobre esses avanços tecnológicos do transporte. É proibido evoluir sem autorização deles. E os carros não devem evoluir, devem ser extintos.

Carro elétrico | Ilustração: Ilija Erceg/Shutterstock

Exemplo dessa visão RRI é dado pela antropóloga belga Axelle Van Wynsberghe e pela funcionária da Comissão Europeia, a portuguesa Ângela Guimaraes Pereira. Elas fazem lobby para que essas novas formas avançadas de transporte privado não prosperem, uma vez que “os cidadãos parecem estar motivados a limitar, senão eliminar o uso do carro, e priorizam modos ativos de transporte, como caminhar e andar de bicicleta”.

Claro que a disseminação do carro a gasolina como produto de massa trouxe efeitos negativos. Congestionamentos, acidentes, destruição do meio ambiente para criar estradas, poluição etc. Por outro lado, carros salvaram vidas, aproximaram pessoas, espalharam prosperidade, facilitaram nosso deslocamento etc. Nada disso importa. Para a turma do RRI o carro deveria ter morrido antes mesmo de nascer.

Esses mesmos “progressistas” têm uma lista preferencial de alvos em pesquisas avançadas: a biotecnologia, a inteligência artificial, a robótica, a nanotecnologia, e a reprodução humana. Os adeptos da RRI acham que essas invenções demoníacas deveriam ser devolvidas para a caixa de Pandora de onde surgiram. Por princípio, não são “responsáveis”. Talvez seja necessário, segundo eles, apertar o botão da “estagnação responsável”.

A mão invisível

Um exemplo dessa resistência ao progresso foi dado recentemente pelo linguista e militante de esquerda norte-americano Noam Chomsky, admirador confesso das ditaduras da Venezuela e Cuba. Chomsky atacou a plataforma de linguagem ChatGPT, que ele acusou de promover “plagiarismo high tech”. “Não acho que [o ChatGPT] tenha algo a ver com educação. É uma maneira de evitar o aprendizado”, disse Chomsky, ao entrevistador Thijmen Sprakel, da EduKitchen. Para ele, a educação precisa continuar estagnada em processos didáticos de séculos atrás e dependente dos senhores acadêmicos da verdade, incluindo ele próprio.

Ilustração: Montagem Revista Oeste/Shutterstock

No seu artigo para a Reason, Ronald Bailey aponta a solução simples e lógica para avaliar as novas tecnologias: a boa, velha e conhecida mão invisível do mercado. “A maioria das pessoas não sabe o que pensar de uma nova tecnologia até que a utilize”, escreve Bailey. “O mercado é um processo de descobrimento que nos permite experimentar coisas novas e aceitá-las ou rejeitá-las. A turma do RRI quer bloquear esse processo”.

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