Salman Rushdie | Foto: Reprodução Redes sociais
O ataque a Salman Rushdie mostra como a cultura do cancelamento pode ser brutal e a nossa reação, covarde
Vamos lembrar, horrorizados, a ideia de “olho por olho, dente por dente”; a crença do Antigo Testamento de que a vingança era a melhor forma de justiça. E, no entanto, na nossa implacável era do cancelamento, enfrentamos algo ainda pior. Hoje temos o “olho por uma mágoa”. O “olho por um ego ferido”. Vejamos a foto mais recente de Salman Rushdie, a primeira a ser publicada desde que ele foi brutalmente atacado no Estado de Nova Iorque, em agosto do ano passado. O autor está de óculos, com um tampão na lente direita. Isso porque ele ficou cego do olho direito. Um homem ficou ofendido com um romance que Rushdie escreveu 35 anos atrás e tirou um dos olhos dele para compensar.
Todo mundo precisa olhar para o rosto de Rushdie depois do ataque medieval sofrido por ele no ano passado. Aqueles que usam o termo “islamofobia”, que acreditam que as críticas ao Islã são uma questão moral que a sociedade não deve tolerar, devem ser forçados a olhar, para que possam enxergar o preço dessa ideologia. A foto foi publicada pela revista New Yorker, com uma entrevista feita por David Remnick com o autor. Rushdie foi esfaqueado aproximadamente 12 vezes. Ele tem cicatrizes no rosto. Sua boca fica caída quando ele fala. Ele tem dificuldade de digitar, porque a ruptura do nervo ulnal em sua mão esquerda acabou com a sensibilidade na ponta de seus dedos. Ler também é difícil, porque sua visão foi comprometida. Rushdie agora “lê usando um iPad, para poder ajustar a luminosidade e o tamanho da fonte”. Nos tempos da Inquisição, um objeto cortante era usado para arrancar a língua daqueles que diziam heresias. Na Nova Inquisição, um escritor tem sua capacidade de escrever violentamente prejudicada pelo crime de ofender o Islã.
Um dos aspectos mais assustadores sobre o ataque sofrido por Rushdie foi o silêncio que se seguiu. Claro, houve uma explosão na cobertura da mídia nas horas e nos dias depois que Hadi Matar, 24 anos, um cidadão norte-americano de origem libanesa, supostamente esfaqueou Rushdie no palco da Instituição Chautauqua por causa de Os Versos Satânicos, seu romance de 1988. Mas a repercussão diminuiu com uma rapidez indecorosa e covarde. Houve algumas pequenas leituras públicas pró-Rushdie, mas um movimento “Je S’uis Salman” ficou visivelmente ausente. A tentativa de execução extrajudicial de um dos maiores romancistas da era moderna por escrever um livro que os aiatolás desaprovam não incomodou a consciência do Ocidente por muito tempo.
Somos forçados a nos perguntar se o silêncio continua sendo violência. “Silêncio é violência” é o grande grito de guerra woke, amado pelos ativistas do Black Lives Matter em particular. Se você fica quieto diante da injustiça, dizem eles, você faz parte dessa injustiça. O silêncio ensurdecedor entre os “progressistas” depois do suposto ataque islamita contra Rushdie também não foi uma espécie de cumplicidade? Esse silêncio não foi uma violência? Porque sem dúvida foi uma covardia. O instinto básico de autopreservação, de fazer tudo ao seu alcance para evitar chamar a atenção dos islamitas descontrolados, se tornou o princípio organizador das elites da mídia e da cultura no Ocidente. A solidariedade literária que se dane — temos nosso pescoço para proteger.
O silêncio depois do esfaqueamento de Salman Rushdie foi também uma confirmação brutal de que algumas figuras das novas elites de fato compartilham a crença islâmica de que é errado zombar do Islã
Dois dias depois do ataque, um jornalista da revista The Atlantic afirmou que a ausência de indignação justificada em relação ao ataque sofrido por Rushdie apontava para uma “falha na cultura”. Parecemos não acreditar mais “que a liberdade individual é algo pelo que vale a pena lutar e morrer”, escreveu ele. Essa timidez das elites sobre um suposto ato de terror digno da Inquisição fez eco ao comportamento vergonhoso de setores do establishment literário quando o Irã emitiu a fatwa pela primeira vez, em 1989. Como Remnick nos fez lembrar, muitas figuras de peso não apoiaram Rushdie naquela época. O escritor John le Carré sugeriu que ele recolhesse o romance, “até que um momento mais calmo chegasse”. Outro romancista, Roald Dahl, o acusou de ser um “oportunista perigoso”. O cantou e compositor Cat Stevens afirmou que o autor deveria saber que, de acordo com o Corão, “se alguém difama o profeta, deve morrer”. Jimmy Carter, ex-presidente americano, Germaine Greer, escritora, Auberon Waugh, jornalista, o arcebispo da Cantuária e outros manifestaram sua desaprovação em relação a Salman Rushdie e seu livro problemático.
Mas, de certa forma, o silêncio depois do esfaqueamento de Rushdie foi ainda pior. Não foi apenas um caso de olhar para o chão e torcer para os canceladores islamitas violentos passarem reto, o que já seria suficientemente ruim. Foi também uma confirmação tão brutal de que algumas figuras das novas elites de fato compartilham a crença islâmica de que é errado zombar do Islã. Claro, elas nunca agrediriam Rushdie nem atacariam a redação do Charlie Hebdo. Mas concordam com esses violentos algozes de que blasfemar contra o Islã — ou a islamofobia, como está na moda dizer — é algo tão socialmente desestabilizador que causa “sofrimento”. Vamos lembrar quando escritores do alto escalão contestaram o fato de a PEN America ter oferecido um prêmio de coragem ao Charlie Hebdo? O massacre foi triste, eles disseram, mas não vamos esquecer as montagens feitas pela revista semanal com o objetivo de causar “humilhação e sofrimento”. Falar sobre a mágoa “sofrida” poucos meses depois da violência real sofrida pelos cartunistas e escritores do Charlie Hebdo foi uma prova da desordem moral das elites modernas.
Essa é a sombria verdade sobre a situação de Salman Rushdie: ela representa uma fusão da antiga intolerância religiosa com o novo credo secular do cancelamento. Nos últimos 30 e tantos anos, Rushdie ficou preso numa espécie de movimento convergente, com devotados censores religiosos de um lado e controladores politicamente corretos do discurso público do outro. O ataque sofrido por ele em agosto não foi tão atípico para a nossa civilização como gostaríamos de acreditar. Na verdade, foi uma manifestação mais medieval e mais violenta de uma ideia que é tragicamente banal hoje em dia — de que as palavras podem machucar, que se sentir ofendido é terrível, e às vezes é preciso tomar medidas para banir ou silenciar as pessoas que magoam você. Hadi Matar pode acabar se tornando apenas um algoz mais ameaçador do culto do cancelamento que tomou conta da sociedade ocidental de forma nefasta.
A capitulação liberal à violência dos que se ofendem com facilidade precisa acabar. Em vez disso, vamos nos lembrar do texto de Rushdie em Joseph Anton: Memórias, das coisas que pelas quais realmente “vale a pena lutar” — “liberdade de expressão, liberdade de imaginação, liberdade em relação ao medo… Além de ceticismo, irreverência, dúvida, sátira, comédia e júbilo ímpio”. Precisamos nunca “recuar de defender essas coisas”, disse ele. Essas, sim, são palavras para levar para a vida.
Brendan O’Neill é repórter-chefe de política da Spiked e apresentador do podcast da Spiked, The Brendan O’Neill Show.
Ele está no Instagram: @burntoakboy
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Revista Oeste