sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

‘Moeda comum com a Argentina é perda de tempo’, afirma economista Marcos Lisboa

 

Marcos Lisboa, economista e atual diretor-presidente do Insper | Foto: Divulgação/Insper


Ele nota que o Brasil tem problemas suficientes para resolver antes de socorrer vizinhos e alerta para uma forte crise sem austeridade fiscal

“Para que serve uma moeda comum que ninguém aceita?” É assim que o economista Marcos Lisboa responde a pergunta que dominou o noticiário nesta semana, depois de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmar que o país pretende instituir uma moeda comum com a Argentina, que vive um dos piores momentos de sua história. “Na melhor das hipóteses, nada vai acontecer. Na pior, o Brasil vai ceder dólares para a Argentina”, diz.

Lisboa é um dos principais nomes do debate acadêmico sobre economia no país, conhecido pelas análises acerca das razões do crescimento pífio, além de ser crítico das políticas estatais de incentivos e do modelo caótico de tributação brasileiro.

Presidente do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) e doutor em economia pela Universidade da Pensilvânia, Lisboa vê com preocupação a volta da expansão dos gastos públicos no governo Lula 3.

Marcos Lisboa | Foto: Divulgação

Leia os principais trechos da entrevista.

O país saiu de um governo com discurso liberal, de privatizações, cortes de gastos públicos e, agora, volta para um modelo estatizante. Qual a avaliação do senhor sobre o horizonte econômico?

Tenho uma visão um pouco diferente da maioria nesse tema. É importante analisar os fatos e as evidências. Acho que são, do ponto de vista programático, do que foi aprovado pelo Congresso, dois governos muito parecidos. Basta analisar a pauta do que foi aprovado nos últimos dois anos. Isso contou com apoio da esquerda e da direita de maneira equivalente, numa agenda que envolve conceder benefícios, subsídios, sanções e proteções para setores da economia. Isso aconteceu com semicondutores, com proteções regionais, com o etanol e a própria Proposta de Emenda à Constituição (PEC) apelidada de kamikaze (ampliou benefícios no ano passado). Vejo muito mais continuidade nessa pauta de distribuição de benefícios setoriais do que uma ruptura.

“Se faltar dólar, a Argentina vai pagar com o quê? Com uma moeda que o Brasil inventou. O que a gente faz com essa moeda se ninguém aceita?”

Mas há uma clara diferença nos posicionamentos econômicos de ambos os governos, não acha?

Sei que os discursos são muito diferentes — em várias áreas, são efetivamente muito diferentes. Mas, na prática, esquerda e direita têm votado conjuntamente no Congresso, numa agenda que é essencialmente a distribuição de proteções, sanções, subsídios setoriais. É uma agenda de aproveitamento eleitoral que infelizmente domina o país. Hoje, Fundo Eleitoral, Fundo Partidário, emendas parlamentares têm o apoio da esquerda e da direita. Há muito barulho sugerindo divergência, mas quando você olha na prática, a agenda econômica — não estou entrando em outros temas — é parecida.

Qual a sua avaliação sobre a ideia de uma moeda comum entre o Brasil e a Argentina? Isso tem provocado muita preocupação em todos os setores econômicos do Brasil.

É uma perda de tempo. Na melhor das hipóteses, nada vai acontecer; na pior, o Brasil vai ceder dólares para a Argentina. Fora isso, nada acontece; quer dizer, vamos lá, você tem um comércio exterior, a Argentina exporta para o Brasil, e o Brasil exporta para a Argentina. Se o Brasil tem déficit, você paga em dólar, e se a Argentina tem déficit ela paga em quê? Nessa moeda comum que ninguém aceita? Para que serve uma moeda comum que ninguém aceita? A Argentina tem um problema de inflação elevada, desequilíbrio nas contas públicas.

“O Brasil tem sempre esse discurso de que ‘a gente vai fazer uma agenda alternativa contra o restante do mundo, vamos fazer acordo com a Palestina, com o Irã, com a Turquia, com a Argentina’. A gente insiste em ser um país pobre”

Isso poderia indicar que o Brasil está ajudando a Argentina a tentar “driblar” o dólar?

Isso é uma piada de mau gosto. Quando você busca o comércio pelo mundo, você vai tentar distribuir moedas que o mundo aceita, pode ser euro, pode ser dólar, mas não uma moeda que só o Brasil e a Argentina aceitam. Essa ideia é inacreditavelmente incompetente. A Argentina precisa de dólar? Ela precisa da moeda norte-americana porque está tabelando dólar abaixo do seu preço para tentar, de uma maneira espúria, segurar a inflação, porque ela não consegue fazer o ajuste fiscal de que precisa, e a inflação saiu de controle. Estamos propondo ajudar a Argentina, como se não tivéssemos problemas suficientes.

Mas, em se concretizando essa ideia, isso prejudicaria o Brasil com outros países fortes, como os Estados Unidos?

Se você cria uma moeda comum entre o Vietnã e a Tailândia, e daí? Não serve para nada. O Brasil tem sempre esse discurso de que ‘a gente vai fazer uma agenda alternativa contra o restante do mundo, vamos fazer acordo com a Palestina, com o Irã, com a Turquia, com a Argentina’. A gente insiste em ser um país pobre.

O economista Marcos Lisboa, dando aula no Insper | Foto: Divulgação

Em 2008, o Brasil fez uma aposta arriscada em fazer do Estado o indutor da economia, por meio de investimentos enormes em meia dúzia de empresas escolhidas, que passaram a ser chamadas de “campeãs nacionais”. De volta ao poder, o PT já dá sinais de que voltará a negociar com essas mesmas empresas, algumas implicadas na Lava Jato.

Isso é uma história antiga no Brasil, é uma agenda ecumênica. Ela vem da direita e da esquerda, quer dizer, foi a agenda do Juscelino Kubitschek nos anos 1950 e do Ernesto Geisel nos anos 1970. Essa imagem de que desenvolvimento vem com apoio do Estado ao investimento público e privado é a agenda tradicional do Brasil e tem um apoio imenso da sociedade. Veja o que a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) defende. Veja a agenda das organizações do setor privado. Todas pedem subsídios públicos. Eu acho que a história dos ‘campeões nacionais’ foi inventada depois, porque apoiaram muitas empresas que quebraram. Como o governo não pode apoiar a empresa que quebra, ajudou essas empresas a serem compradas por outras. Então teve empresas de cana-de-açúcar que quebraram, produtoras de commodities, e aí o BNDES financiou novas empresas, para comprar aquelas para quem ele tinha emprestado. Vai dar errado de novo? Vai.

De 2010 a 2014, houve uma quantidade de subsídios gigantescos para a indústria automobilística. Por que essa insistência em subsídios nunca dá certo?

Houve incentivo ao grupo automobilístico, sim, mas compare com os subsídios ao desenvolvimento regional. Tem fracasso maior no Brasil do que a Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste)? Foram 60 anos de subsídios para montar fábricas, inclusive de automóveis, e nenhuma para em pé quando se observa a distância da renda por habitantes no Nordeste em relação ao Sudeste. Vamos reconhecer que a Sudene deu errado? Vamos reconhecer que os incentivos deram errado? Vamos reconhecer que a Zona Franca de Manaus fracassou? Só que a gente não consegue reconhecer os fracassos. Porque o que deu errado é sempre o outro, a culpa é sempre do outro.

“O Estado não tem de salvar empresa que quebrou porque os donos são amigos do rei. Mas o Brasil insiste em salvar quem quebrou, em dar subsídio para investimento regional que vira tudo, menos desenvolvimento”

Como o senhor vê essa tentativa de corte de impostos para tentar, enfim, alavancar a economia, a exemplo da extinção do IPI, sugerido pelo ex-ministro Paulo Guedes?

A reforma tributária não acontece porque o setor privado não quer. Deveríamos fazer um IVA, que é o Imposto sobre Valor Adicionado, que é o que o restante do mundo tem, um tributo muito simples. É um imposto sobre consumo, você pega todas as notas fiscais do que vendeu, menos todas as notas fiscais do que comprou, paga uma alíquota uniforme, que é uma alíquota sobre todo o valor adicionado — ou seja, sobre o que você gerou de valor.

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Sede do BNDES, no Rio de Janeiro | Foto: Divulgação/Agência Brasil

O velho patrimonialismo explicado por Sérgio Buarque de Holanda ainda é muito forte.

Sim, é o velho patrimonialismo brasileiro. A gente não consegue superar problemas. Vamos lá: empresa ruim quebra! O Estado não tem de salvar empresa que quebrou porque os donos são amigos do rei. Mas o Brasil insiste em salvar a empresa que quebrou, em dar subsídio para investimento regional que vira tudo, menos desenvolvimento.

O que falta para o Brasil se tornar uma plataforma interessante de negócios para o mundo?

Falta muita coisa. A gente tem de querer de fato ter uma agenda de economia de mercado eficiente. O custo de logística é gigantesco, não conseguimos fazer investimento em infraestrutura, além do oportunismo do setor privado, que conta com a anuência do setor público em rever concessões e interferir em contratos. Nosso setor privado é fantástico… Adora o mercado, desde que esteja tudo a favor; se há qualquer problema, corre para uma recuperação judicial. Então o Brasil é um país caro, é muito caro produzir aqui. A gente tem sempre a fantasia de que o outro paga a conta. Acha que o trabalhador vai ser beneficiado por essa ou aquela proteção, e que a empresa vai pagar a conta. Não! Quem paga a conta é o trabalhador, quem paga o ‘Sistema S’ é o trabalhador.

Lula já anunciou que o BNDES voltará a fornecer empréstimos para outros países, prática que trouxe resultados terríveis. É mais uma ação ideológica sem nenhum critério técnico?

Sempre prefiro esperar para ver as medidas na prática, porque tem um hábito brasileiro do governo falar para a militância. A gente viu isso no governo anterior e vemos agora — uma série de frases de efeito. Mas fico preocupado com essa ansiedade de uma certa militância, que vê a China ou os Estados Unidos como o grande inimigo. É uma coisa meio juvenil. Realmente espero que não aconteça, porque só vai dispersar os recursos públicos.

Recentemente, o senhor disse que o Brasil corre o risco de enfrentar uma crise severa. O motivo seria a gastança e a aventura fiscal?

O Brasil é um país complicado, porque, quando tem uma crise severa, aparentemente a gente evita o precipício e faz algumas reformas. Isso aconteceu no começo dos anos 1990, quando o Brasil abriu a economia e cortou os subsídios fiscais, o que viabilizou o Plano Real. Algo semelhante aconteceu recentemente com o governo Temer. O país estava numa recessão complicadíssima, uma crise monumental, depois de muitos erros na condução da política econômica, investimentos públicos fracassados, subsídios que deram errado, recursos jogados ao mar. O governo Temer fez um freio de arrumação. Houve corte de subsídios, foi implementado o teto de gastos, a taxa de juros despencou, e o Brasil saiu da recessão grave. O problema é que, na hora que as coisas começam a ir bem no país, a gente incide nos velhos erros. Quando passou o momento mais grave da pandemia, foram aprovadas 42 medidas distribuindo subsídios e proteções. De novo, com o apoio da esquerda e da direita. Aquele Brasil velho que sobrevive graças a subsídios públicos resulta em um menor crescimento.

Num artigo recente, o senhor escreveu: “A inflação anda a se reduzir no Brasil o que deveria induzir uma queda nas taxas de juros, entretanto, o aumento dos gastos públicos previstos no Orçamento e inflado pela PEC da Transição pode inverter essa influência. Sem o freio de arrumação a consequência será o maior endividamento do setor público em condições adversas”. Qual seria agora o freio de arrumação?

Cortar gastos, reduzir subsídios e benefícios e uma agenda de fato para corrigir as distorções da atividade econômica. A abertura da economia seria bem-vinda. Essa necessidade de estar conversando o tempo todo com a militância, espero que não atrapalhe essa agenda, que é tão importante para o país. No mais, não vejo a gente avançando, não enxergo abertura comercial, não vejo a discussão sobre fortalecer as agências reguladoras, fortalecer os mecanismos do Estado de freios e contrapesos. Então, temo que a gente continue, infelizmente, neste país que anda devagar.

Fernando de CastroRevista Oeste