sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

'Santa Jacinda já vai tarde', diz Tom Slater, da Spiked

 



A primeira ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, anunciou a sua renúncia, no dia 19 de janeiro de 2023 | Foto: Shutterstock


A primeira-ministra da Nova Zelândia se tornou a garota-propaganda internacional do autoritarismo “gentil”


Jacinda Ardern, primeira-ministra da Nova Zelândia, anunciou que vai renunciar — quase seis anos depois de se tornar a líder do Partido Trabalhista e, quase no mesmo instante, virar a queridinha do cenário internacional. Ela fez um último discurso emocionado, e a mídia corporativa global deu um suspiro coletivo final.

Com as eleições que vão acontecer em outubro, em que ela disputaria um terceiro mandato, Ardern anunciou hoje que não tem “mais combustível no tanque” para governar. E que vai renunciar no mês que vem. “Não estou saindo porque acho que não vamos vencer a eleição”, disse ela, contendo as lágrimas, “mas porque acredito que podemos e vamos vencer, e precisamos de sangue novo para esse desafio.” Os comentaristas globais pareceram acreditar, ignorando alegremente as pesquisas, que colocam sua popularidade no nível mais baixo desde que Jacinda assumiu o cargo.

Nova Zelândia
Jacinda Ardern, primeira-ministra da Nova Zelândia, ao anunciar a renúncia, nesta quinta-feira, 19 (quarta-feira, no horário de Brasília) | Foto: Reprodução/YouTube

Aliás, é um atestado do poder duradouro da “jacindamania” — entre os jornalistas, se não entre a população neozelandesa — que muitas pessoas tenham repetido sua explicação para a renúncia ao cargo de modo totalmente acrítico. No Reino Unido, Beth Rigby, do canal Sky News, poderia muito bem ser assessora de imprensa de Ardern, tamanha a efusividade da sua reação. “Até hoje, só vi políticos forçados a renunciar ou derrotados nas urnas”, ela tuitou, “mas em Ardern encontramos uma rara exceção, que mais uma vez nos mostrou como liderar de um jeito diferente.”

Claro, uma líder impopular apressada para se livrar de uma derrota eleitoral bastante provável dificilmente é uma história política original. Mas Rigby e o restante do fã-clube de Ardern não deixaram isso atrapalhar sua última declaração de amor antes que a primeira-ministra da Nova Zelândia deixe o cargo para ter mais tempo para a família e para o lucrativo circuito de palestras internacionais.

O coro global de elogios é uma despedida apropriada. Ardern é, em muitos sentidos, uma líder arquetípica da nossa era, em que políticos obtêm tanta legitimidade, se não mais, da sensação de conforto que proporcionam às elites internacionais do que pelo que fazem e conquistam de fato para seu próprio povo. Aliás, sua torcida organizada nem se dá ao trabalho de olhar para essas coisas. Se o fizessem, veriam por que Ardern está fazendo uma retirada às pressas. Ela deixa o cargo em meio a uma dolorosa crise no custo de vida e a um aumento nos índices de criminalidade em seu país.

Elites mundiais machucadinhas

Também é impressionante que tantos comentaristas ignorem tranquilamente as políticas de imigração da primeira-ministra, que certamente seriam chamadas de fascistoides caso um primeiro-ministro do Partido Conservador inglês as implementasse no Reino Unido. Ardern chegou ao poder em 2017, prometendo reduzir a imigração às dezenas de milhares. Ela também foi criticada por políticas de barrar a entrada de imigrantes deficientes. No ano passado, uma garota autista de 12 anos das Filipinas foi impedida de se mudar para a Nova Zelândia com os pais por causa dos custos que sua condição traria ao sistema de saúde.

Durante a pandemia, Ardern implementou uma severa polícia de covid zero, mantendo neozelandeses no exterior, impedindo que muitos deles voltassem para casa

Mesmo assim, em se tratando de Arden, tudo sempre foi uma questão de sentimentos. Sua administração “empática” do massacre bárbaro da mesquita de Christchurch, no início de seu governo, garantiu seu status mundial como um novo tipo de líder — em que sua “inteligência emocional” era celebrada acima de tudo. A “jacindamania” se tornou global. Na sequência do Brexit e de Trump, a Nova Zelândia liderada por Ardern se tornou uma espécie de coração num mundo sem coração para as elites globais machucadinhas. O New York Times certa vez a celebrou como a “antítese progressista de valentões de direita, como Trump, Orban e Modi”.

A primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, tira fotos com fãs, em Auckland, durante a Duke and Duchess Royal Tour, em outubro de 2018, Nova Zelândia | Foto: Shaun Jeffers/Shutterstock

De certa forma, o estrelato de Ardern reflete o triunfo do estilo político sobre a substância. Com toda a conversa de os crédulos eleitores de Trump serem seduzidos pelo brilho da celebridade, Jacinda Ardern teve exatamente esse efeito em um certo tipo de “esquerdista” metropolitano. Ela era mais um totem do que uma governante, uma influenciadora com quem se podia contar para verbalizar todas as platitudes corretas sobre a mudança climática, o bem-estar e a empatia.

Mas isso não quer dizer ela não tenha ideologias políticas dignas de nota. Aliás, Ardern também se tornou uma representante de um autoritarismo “esquerdista” e “respeitável” que essencialmente tomou conta do mundo ocidental, do Canadá à Escócia, passando pelos Estados Unidos.

Um belo cargo na ONU

Durante a pandemia, Ardern implementou uma severa polícia de covid zero, mantendo neozelandeses no exterior, impedindo que muitos deles voltassem para casa para se despedir de familiares no leito de morte, antes de ser forçada a abandonar essa política, diante de novas variantes mais transmissíveis. Enquanto a Nova Zelândia era forçada a conviver com o vírus, seu índice de vacinação estava muito atrasado. A resposta da primeira-ministra foi criar uma sociedade em dois níveis, em que os cidadãos não vacinados enfrentaram restrições mais rígidas. Um belo exemplo de sua famosa empatia e sua inclusão.

Manifestantes protestam contra medidas do governo da Nova Zelândia relacionadas à pandemia de covid-19, no terreno do Parlamento, no centro de Wellington, em 20 de fevereiro de 2022 | Foto: Shutterstock

Para além das fronteiras de seu país, Ardern se tornou uma defensora declarada da censura. Em um discurso impressionante na ONU, em setembro de 2022, ela declarou que a “desinformação” e as “informações falsas” — a dissidência, na linguagem das elites — eram uma “arma de guerra” que precisava ser enfrentada pelos líderes internacionais, se quisermos derrotar tanto as figuras que espalham “fake news” quanto os negacionistas da mudança climática. Faltou pouco para ela dizer exatamente como isso deveria ser feito, mas a mensagem não poderia ter ficado mais clara: não se pode mais confiar nas massas fáceis de manipular, está na hora de as elites assumirem o controle.

Jacinda Ardern Nova Zelândia
Primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern | Foto: Divulgação/ONU

A ascensão da Santa Jacinda reflete o triunfo do paternalismo. Entre nossas elites supostamente progressistas, tornou-se senso comum que as populações precisam ser controladas para o seu próprio bem. E que uma medida de quanto um líder se importa é a brutalidade com que ele combate ideias ou comportamentos considerados perigosos.

É quase certo que continuaremos tendo notícias de Ardern. Sem dúvida um belo cargo na ONU, na Organização Mundial da Saúde ou em algum medonho órgão supranacional estão à sua espera. Também não vamos deixar de ver os políticos elitistas que ela passou a representar. Passou da hora de fazermos um acerto de contas com esse tipo de “autoritarismo” gentil.


Tom Slater é editor da Spiked.
Ele está no Twitter: @Tom_Slater_

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Revista Oeste