sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

'A orgia da Lei Rouanet', por Cristyan Costa

 

A ministra da Cultura, Margareth Menezes, e beneficiados pela Lei Rouanet | Foto: Montagem Revista Oeste/Valter Campanato/Agência Brasil/Reprodução redes sociais


Governo Lula reabre os cofres do Ministério da Cultura


Trezentos mil reais para a gravação, em tempos de streamming, de 2 mil DVDs de música; mais R$ 300 mil para a distribuição de 8 mil álbuns de figurinhas sobre a tradição de uma cidade no interior de São Paulo; R$ 960 mil para produzir um catálogo com o tema “sustentabilidade”; e R$ 5 milhões para um projeto que causou polêmica nesta semana: uma peça de teatro da atriz Claudia Raia. Essas iniciativas se juntam a outras 2 mil, todas autorizadas a captar recursos da Lei Rouanet. O anúncio foi dado nesta semana pela ministra da Cultura, Margareth Menezes, que liberou R$ 1 bilhão para custeá-las.

“Em apenas 20 dias de trabalho, o Ministério da Cultura (MinC) identificou os projetos que já tinham sido liberados pela Rouanet, mas que estavam bloqueados pela administração passada”, disse Margareth, ao comemorar o que chamou de “notícia maravilhosa”. A boa-nova aos artistas, contudo, ressuscitou um passado sombrio e nebuloso da era PT que incomoda os pagadores de impostos, sobretudo no que diz respeito a dois tópicos: 1) quantidade de dinheiro destinada a projetos aprovados, cuja qualidade é bastante duvidosa; 2) critérios de escolha que privilegiam peixes grandes ou obras com viés de esquerda.

Passado sombrio e nebuloso

Batizada de Rouanet em homenagem a Sérgio Paulo Rouanet, criador da lei e secretário de Cultura de Fernando Collor de Mello, a lei instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura, em 23 de dezembro de 1991. O dispositivo tem a finalidade de incentivar projetos culturais como forma de girar a economia e valorizar a arte. Com os anos, a Rouanet passou a ser criticada por setores da sociedade, em razão da forma como foi usada pelos governantes.

O desrespeito se estende também às igrejas em Salvador, na Bahia, que há décadas aguardam ajuda do setor cultural para reformas

Em 2013, durante o segundo mandato de Dilma Rousseff, o documentário O Vilão da República, sobre a vida de José Dirceu, conseguiu autorização para captar R$ 1,5 milhão da Rouanet. A ideia da diretora era “acompanhar a intimidade deste personagem controverso, num momento importante de sua vida”. O filme narra a história de Dirceu, contando a sua trajetória na guerrilha, a chegada ao primeiro escalão do governo Lula até a condenação, quando o ex-ministro foi sentenciado a mais de dez anos, no julgamento do Mensalão.

Sete anos antes, o filme Brizola, Tempos de Luta conseguia quase R$ 2 milhões da Rouanet, para discorrer sobre o passado do ex-governador do Rio de Janeiro. Paralelamente, o MinC, sob Lula, negara patrocínio a um filme sobre o ex-governador de São Paulo Mário Covas, do PSDB. Entre as empresas que apoiaram financeiramente o projeto sobre Brizola, estão as estatais Petrobras (R$ 592 mil), Eletrobras (R$ 300 mil) e CEEE (R$ 50 mil).

Ainda na esteira de privilégios a obras mais à esquerda, em 2011, a cantora Bebel Gilberto, apoiadora de Lula e Dilma Rousseff, captou quase R$ 2 milhões para uma turnê pelo Brasil. O dinheiro fora liberado por sua tia, a então ministra da Cultura, Ana de Hollanda, irmã do compositor Chico Buarque. Bebel teria tido vantagens sobre outros artistas. Com o montante, ela gravou um CD e apresentou-se em 11 cidades ao redor do país. Ana negou qualquer irregularidade no processo que beneficiou a sobrinha. Desgastada, a ministra deixou a pasta posteriormente.

Outro projeto que chamou a atenção, não tanto pelo conteúdo, mas pelo preço e por quem o propôs, diz respeito a um blog da cantora Maria Bethânia, chamado “O Mundo Precisa de Poesia”. O trabalho obteve permissão para captar R$ 1,3 milhão. Na época, o caso levantou um debate sobre se Maria Bethânia, uma artista já consagrada, precisava da Lei Rouanet para conseguir um patrocínio, em vez de dar espaço para artistas menores à procura de empresas que possam ajuda-los a mostrar seu trabalho. Nas redes sociais, o valor também foi interpelado. Isso porque um blog pode ser hospedado gratuitamente em plataformas como Medium e WordPress. Após a repercussão negativa, a cantora desistiu da ideia. Em 2022, Bethânia “fez o L”, durante um show, e declarou voto no candidato Lula.

Somam-se a todos esses problemas fraudes mais graves, em virtude da falta de fiscalização e transparência adequadas no MinC. Em 2016, no âmbito da Operação Boca Livre, a Polícia Federal (PF) indiciou 14 pessoas, entre elas empresários, advogados e executivos de grandes companhias, lideradas pelo Grupo Bellini, por roubo de R$ 180 milhões na Lei Rouanet. A verba era desviada através de projetos irregulares.

A PF concluiu que diversos projetos de teatro itinerante voltados para crianças e adolescentes carentes deixaram de ser executados, assim como livros não foram doados a escolas nem bibliotecas públicas. Os criminosos usaram o dinheiro público para fazer shows com artistas famosos em festas privadas para grandes empresas, livros institucionais e até a festa de casamento de um dos investigados na Praia de Jurerê Internacional, em Florianópolis, Santa Catarina. O casamento de Carolina Monteiro e Felipe Amorim teve a presença de um cantor sertanejo.

A imoralidade fica ainda mais escancarada em razão do descaso do poder público com o patrimônio brasileiro. Incendiado em 2018, o Museu Nacional havia solicitado, antes da tragédia, por meio da Rouanet, durante a gestão Temer, patrocínio para alguns projetos de reforma. Infelizmente, foram autorizadas apenas as iniciativas ligadas a melhorias do site da instituição e exposições de espécimes. O desrespeito se estende também às igrejas em Salvador, na Bahia, que há décadas aguardam ajuda do setor cultural para reformas. Uma das poucas que conseguiram liberação de verba foi a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, no Pelourinho (Salvador), que recorreu à mídia para ganhar visibilidade e ser restaurada. Um dos apelos da classe artística a Margareth Menezes é que também incentive patrocínios à Biblioteca Nacional, para restaurá-la e evitar o mesmo destino da Cinemateca, que pegou fogo em 2021.

Dinheiro público teria sido usados para bancar o casamento de Carolina Monteiro e Felipe Amorim | Foto: Reprodução

A torneira fecha

Durante o governo Bolsonaro, o então presidente disse que a Rouanet fora “deturpada” por Lula para comprar a consciência da classe artística. Dessa forma, ao assumir o governo, ele fez algumas mudanças, para tentar “moralizar a lei”. Entre as alterações: 1) reduziu em cerca de 90% o cachê de artistas (de R$ 45 mil por apresentação durante a era PT para cerca de R$ 3 mil no caso de atores, R$ 3,5 mil de músicos e R$ 15 mil de maestros); 2) diminuiu o limite de verbas para determinados segmentos, como o de orquestras; 3) deu mais autoridade ao secretário da Cultura para aprovar/vetar projetos que antes dependiam, exclusivamente, de uma comissão composta de 21 representantes da sociedade eleitos por meio de concurso público.

Ao mesmo tempo, segurou as rédeas na aprovação de alguns projetos. O governo sempre considerou excessivo o número de iniciativas autorizadas pela então Secretaria Especial de Cultura. Em 2019, no primeiro ano de governo, foram liberadas 3,7 mil propostas. No ano seguinte, o número subiu um pouco, para 4,6 mil, mas caiu em 2021 para 2,6 mil. Ao deixar o Palácio do Planalto, em 2022, apenas 2,1 mil iniciativas haviam recebido a chancela da Cultura para captar recursos. Para efeito de comparação, em 2018, o governo de Michel Temer deu sinal verde para 5,4 mil projetos culturais — não muito diferente do que acontecia nas gestões petistas.

O futuro do passado

No governo Lula 3, a Lei Rouanet deve voltar a atuar nos mesmos moldes das gestões anteriores do PT, sobretudo em virtude do apoio que o presidente recebeu da classe artística, durante a eleição de 2022. Ao tomar posse, a ministra Margareth prometeu um MinC que seja “uma potência econômica e uma pasta voltada para os artistas”.

O cineasta Josias Teófilo, conhecido, entre outras obras, pelo filme Nem Tudo Se Desfaz e pelo documentário O Jardim das Aflições, discorda da forma tanto como os governos anteriores do PT quanto como Bolsonaro trataram a lei. Apoiador da Rouanet, ele defende mudanças que possam aprimorá-la. Segundo Teófilo, nos últimos quatro anos faltou diálogo do Executivo com a sociedade e a classe artística, e houve exageros nas críticas públicas do presidente à lei. O cineasta reprovou ainda a redução do limite de verbas para determinados segmentos, como o de orquestras, visto que um governo que ataca projetos considerados “irrelevantes” e de baixo teor cultural deveria, então, privilegiar obras consideradas “mais cultas”. De acordo com o cineasta, essas medidas mais atrapalharam que ajudaram Bolsonaro, visto que a gestão acabou desincentivando ao extremo um segmento importante, em vez de remodelá-lo de forma mais justa, transparente e menos restritiva.

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Cineasta Josias Teófilo | Foto: Reprodução/Mídias sociais

Para Teófilo, as reformas na lei incluem fazer com que ela atenda melhor ao artista que está começando, em início de carreira, e permitir a participação de mais empresas pequenas e pessoas físicas nesse processo — da forma como é hoje, apenas empresas muito grandes estão aptas a participar do processo. Para ter sua marca vista por um número cada vez maior de espectadores, esses patrocinadores acabam optando por investir em nomes já consagrados no mundo das artes. “A cultura precisa de algum tipo de incentivo financeiro”, disse o cineasta. “Muitos países fazem uso de mecanismos semelhantes à Rouanet, com a finalidade de ajudar também nomes menos conhecidos a terem seus projetos viabilizados. Lá fora, o valor disponível para o setor artístico é muito maior. Engana-se quem pensa que Hollywood não tem incentivo.”

Sobre o cunho ideológico dos projetos aprovados, Teófilo credita que a direita precisa também apresentar seus projetos para ganhar espaço no setor cultural, em vez de apenas queixar-se da esquerda. “Não adianta ficar reclamando”, afirmou. “Precisamos de mais diversidade cultural e, por isso, essa lei é tão importante. É sempre melhor existir alguma cultura que nenhuma.”

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