sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

'O que é um terrorista?', responde Flávio Gordon

 

A relativização da palavra terrorismo diante dos acontecimentos em Brasília, no dia 8 de janeiro | Foto: Shutterstock


O interesse da esquerda não é saber isso. É prender e neutralizar adversários políticos. E aí o nome das coisas vira um mero detalhe


“Ouso da mídia como arma tem um efeito paralelo ao de uma batalha. Mediante o uso dessas imagens, fomos capazes de controlar à distância o moral do inimigo” — declarou, em julho de 2000, Nabil Qaouk, então comandante do Hezbollah. Explicando como o grupo terrorista xiita — que fazia desabar frequentes tempestades de mísseis sobre Israel — lograra dominar as técnicas de filmagem e distribuição de propaganda para a imprensa ocidental, o xeique muçulmano afirmou que a campanha de desmoralização de Israel aos olhos do mundo fora decisiva para a retirada das forças israelenses do sul do Líbano.

O que o xeique não disse, todavia, é que sua propaganda só frutificou porque o solo era especialmente fértil: a predominância da ideologia “anticolonialista” nas redações e nos estúdios, que conduz o noticiário e o colunismo de opinião a relativizarem (e, por vezes, deliberadamente ocultarem) o terrorismo islâmico. Com efeito, desde aproximadamente meados dos anos 1960, a visão hegemônica nas faculdades de jornalismo ao redor do mundo consiste numa versão adaptada do marxismo, que dividiu as nações do mundo em “exploradoras” e “exploradas”. Nesse contexto, multidões de repórteres-ativistas passaram a se ver como porta-vozes dos explorados, a favor dos quais era permitido mentir, ocultar e manipular a informação. Sua função já não era a de reportar, mas a de integrar a máquina de propaganda “anticolonialista” (contra Israel, contra o Ocidente, contra o capitalismo etc.).

Nabil Qaouk, em 2010 | Foto: Wikimedia Commons

É por essas e outras que Michael S. Malone, consagrado jornalista norte-americano, com passagens por ABC News, New York TimesThe Wall Street JournalForbes e Los Angeles Times, confessou, em artigo de 2008, a sua vergonha em se assumir jornalista nos dias de hoje. Sua desilusão com a profissão que herdou dos avós começou justamente quando, num quarto de hotel, acompanhava a cobertura sobre a Guerra do Líbano, no ano de 2006. No relato de Malone:

“O hotel em que eu estava, em Windhoek, na Namíbia, só sintonizava a CNN, uma emissora que eu já aprendera a abordar com ceticismo. Mas ali se tratava da CNN internacional, o que era pior. Estava ali sentado, primeiro de queixo caído, e logo em seguida gritando para a televisão, enquanto um correspondente após o outro reportavam a carnificina dos ataques israelenses em Beirute, sem praticamente nenhuma notícia complementar da chuva de mísseis lançados pelo Hezbollah sobre o norte de Israel. A reportagem era tão completa e vergonhosamente tendenciosa que permaneci horas assistindo, imaginando que, em algum momento, eventualmente a CNN fosse contar toda a história… Mas não o fez”.

A manipulação midiática detectada por Malone revela algo perturbador: muitos dos responsáveis por decidir o que iremos ler ou ver no noticiário não concebem seu trabalho como informativo, mas como essencialmente político. Nesse contexto, a cobertura torna-se uma arma a serviço da causa que defendem. Assim é que, na mentalidade de muitos jornalistas e intelectuais de esquerda, atos efetivos de terrorismo (bombas, tiros, explosões, facadas etc.), desde que praticados por algum representante da categoria dos “explorados”, são justificáveis diante do fato primeiro e pecado original da exploração. Por vezes, o termo “terrorismo” chega a desaparecer do noticiário, quando se trata de cobrir a violência praticada por “explorados” contra “exploradores”.

Michael S. Malone | Foto: Marcin Wichary/Wikimedia Commons

A relativização do terrorismo atingiu o paroxismo justo num de seus momentos mais espetaculosos, quando dos atentados de 11 de setembro. Comentando sobre o chocante evento, o ultrarradical Noam Chomsky, intelectual público dos mais influentes no mundo, qualificou os EUA de “Estado terrorista”. Resumidamente, a sua tese era a seguinte: os ataques terroristas haviam sido uma resposta dos povos oprimidos do Terceiro Mundo ao imperialismo norte-americano. Antes que vítima, a América era, portanto, a verdadeira responsável pelos atentados.

De acordo com a Lei Antiterrorismo sancionada por Dilma Rousseff, não faz parte dos tipos penais o cometimento de crimes por razões políticas. Na época, essa ressalva na lei foi concebida a fim de proteger grupos radicais alinhados ao petismo para que pudessem continuar cometendo impunemente suas ações de violência política

A macabra racionalização chomskyana não era uma posição excêntrica no seio da intelligentsia esquerdista mundial. De acordo com ela, os terroristas da Al-Qaeda foram irremediavelmente atraídos para o campo magnético das Torres Gêmeas, não tendo alternativa que não a de se explodirem contra milhares de inocentes. Bin Laden e seus pupilos haviam manifesto um instinto de liberdade que, sob condições de opressão, tende a se mostrar exasperado e eventualmente homicida. Quanto ao país agredido, sendo inexorável e aprioristicamente culpado no tribunal da história, o que lhe restava era assimilar o golpe com humildade e resignação, extraindo-lhe motivo para uma autocrítica. Como notou à época o analista Frédéric Encel, a lógica chomskyana funcionava “como se os trabalhadores no World Trade Center e os passageiros dos aviões sequestrados encarnassem o mal da América, tendo de expiar a culpa pelo culto do rei dólar, o destino dos apaches, o McDonald’s”.

Noam Chomsky, no Fórum Social Mundial, em 2003 | Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Embora soe odiosa quando dita sem rodeios, a mensagem era clara: os EUA haviam pedido por aquilo. Poucos, obviamente, ousaram expressar a coisa nesses termos. Mas, incrivelmente, houve quem tenha perdido até mesmo esse mínimo de pudor. Destaca-se aí o filósofo francês Jean Baudrillard, que escreveu: “Olhando de perto, pode-se dizer que eles o fizeram, mas nós o desejamos… Quando o poder global monopoliza a situação a este nível, quando há tamanha condensação de todas as funções na maquinaria tecnocrática, e quando nenhuma forma alternativa de pensamento é permitida, que outro caminho há senão uma guinada situacional terrorista? Foi o próprio sistema que criou as condições objetivas para essa brutal retaliação” (grifos meus).

Obviamente, também entre os intelectuais brasileiros de esquerda houve quem justificasse o terrorismo como meio político aceitável e até mesmo inevitável. Também por ocasião do 11 de setembro, escrevendo para o Correio Braziliense, o psolista uspiano Vladimir Safatle seguiu a senda aberta por Baudrillard: “Verdade seja dita: a terça-feira negra mostrou como a ação política mais adequada para a nossa época é o terrorismo. Ele é o que resta quando reduzimos a dimensão do conflito social à lógica do espetáculo”.

Ataque terrorista ao World Trade Center, em Nova Iorque, em 11 de setembro de 2001 | Foto: Wikimedia Commons

Anos depois, em artigo com o significativo título “Invenção do terror que emancipa”, Safatle resenhava uma coletânea organizada por Slavoj Zizek (outro notório entusiasta da violência política redentora) e descrevia os terroristas de uma maneira bem peculiar: “Sujeitos não substanciais que tendem a se manifestar como pura potência disruptiva e negativa”. O argumento consista basicamente na afirmação de que o rótulo “terrorismo” adviria, na verdade, de um juízo burguês, moralista e reacionário de práticas revolucionárias inerentes à história política moderna.

Por óbvio, os tortuosos argumentos avançados por intelectuais enragés acabam sempre formatando as cabecinhas do pessoal das províncias das redações e dos estúdios, levando-os a assimilarem como fato inconteste uma tese para lá de controversa, segundo a qual o terror “que emancipa” é sempre uma reação a uma agressão anterior. Retratando a América (ou Israel, ou mesmo o Ocidente como um todo) como o agente primeiro e transcendental do terrorismo, Chomsky, Baudrillard, Safatle e os jornalistas que consomem a sua papinha ideológica acabam equiparando terroristas e vítimas, ambos passivamente sujeitos à atuação de um ator histórico que, de fora e acima, os determina igualmente. Diante do algoz abstrato e categorial, as vítimas concretas (mortas pelo terror) e os agressores concretos (os terroristas da Al-Qaeda, do Hamas ou do Estado Islâmico) são nivelados na condição de pacientes históricos. Diante do “fato” primeiro da opressão, o terrorismo torna-se praticamente um imperativo categórico — ou, nas palavras de Safatle, “a ação política mais adequada para a nossa época”.

Fernando Haddad, Vladimir Safatle e Lula, em 2022 | Foto: Reprodução Redes Sociais

Não é espantoso que essa mesma esquerda, para a qual o terrorismo concreto sempre foi relativizado — quando não exaltado, como se vê na representação cultural benevolente do líder terrorista Carlos Marighella —, resolva agora absolutizar o termo para aplicá-lo irrestritamente a todos os bolsonaristas de algum modo associados aos atos de 8 de janeiro? Deliberadamente omitindo o fato de que, segundo a lei, nem mesmo os crimes efetivamente cometidos naquele dia (vandalismo, depredação, destruição de patrimônio etc.) poderiam ser tipificados como terrorismo, a militância de redação pró-PT não pensou duas vezes em estigmatizar como “terroristas” até mesmo quem não os cometeu, e, mantendo-se acampados em frente ao QG do Exército, nem sequer esteve presente na Praça dos Três Poderes.

Como mostra reportagem de Oeste, a própria PGR afirmou não ser possível enquadrar como “terroristas” os responsáveis pelos atos. De acordo com a Lei Antiterrorismo, de nº 13.260, sancionada por Dilma Rousseff em 2016, não faz parte dos tipos penais o cometimento de crimes por razões políticas. Na época, essa ressalva na lei foi concebida a fim de proteger grupos radicais alinhados ao petismo (a exemplo do MST, do MTST, da UJS etc.), para que pudessem continuar cometendo impunemente suas ações de violência política. Embora seu mérito seja questionável — pois baseada na ética das intenções, e não na das consequências —, o fato é que a ressalva foi aprovada e incorporada na lei, e, portanto, sua aplicação deveria ser isonômica.

Não é o que temos visto, obviamente. Porque o interesse não é saber o que é um terrorista — caso em que os militantes de redação deveriam perguntar, por exemplo, a Orlando Lovecchio, que, em 19 de março de 1968, perdeu a perna na explosão de uma bomba “pela democracia” detonada pelos rebentos de Marighella. O interesse é prender e neutralizar adversários políticos. E aí o nome das coisas vira um mero detalhe. O reino de Confúcio — “a verdadeira sabedoria é dar às coisas os nomes certos” — é substituído pelo do Humpty-Dumpty, o cabeça-de-ovo: “Quando uso uma palavra, ela significa o que eu quiser que ela signifique”.

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Revista Oeste