Filosofia individualista popularizada nos Estados Unidos está conquistando cada vez mais adeptos na América Latina
A política nos países democráticos é permeada por representantes de diversas ideologias. Na maioria das vezes, socialistas, conservadores, liberais e nacionalistas disputam a preferência dos eleitores. Mas o libertarianismo, uma espécie de filosofia individualista popularizada por intelectuais austríacos, está conquistando cada vez mais adeptos.
Os libertários consideram a propriedade privada um direito natural — e inviolável — dos seres humanos. A defesa do capitalismo, das liberdades individuais e da autossuficiência também compõem o conjunto de valores libertários. Essa linha de pensamento surgiu em Viena, na Áustria, no século 19, e é sustentada por filósofos e economistas, como Ludwig von Mises, Friedrich Hayek, Hans-Hermann Hoppe e Murray Rothbard, da Escola Austríaca de Economia.
A principal diferença entre o libertarianismo e o liberalismo é que o primeiro não admite a existência do Estado. Para os libertários, os governos se sustentam necessariamente através da violência. Essas agressões se manifestariam sobretudo nas leis e nos impostos, que foram estabelecidos à revelia da vontade dos indivíduos. Os libertários entendem que o consentimento é fundamental para as relações humanas, e, por esse motivo, defendem a resolução dos conflitos da sociedade por meio da cooperação entre os indivíduos.
O liberalismo, por sua vez, tem o objetivo de assegurar os direitos individuais e promover o sistema capitalista. Para os liberais, o mercado não deve ser regulado por governos nem por órgãos centralizados. A existência do Estado, todavia, é imprescindível para a manutenção da estabilidade social.
Dr. No
O médico e escritor Ron Paul, 87 anos, é um dos principais expoentes do libertarianismo nos Estados Unidos. Ele foi membro da Câmara dos Representantes e concorreu à Presidência em três ocasiões — 1988, 2008 e 2012. Na época em que ainda estava em atividade no Congresso, o autor do livro Definindo a Liberdade trabalhou pela extinção do Banco Central, pela abolição dos impostos e pelo fim da Receita Federal. Dr. No, como também é conhecido, retirou-se da política em 2013, depois das eleições daquele ano.
Depois da aposentadoria de Paul, a responsabilidade de manter o libertarianismo em evidência ficou por conta do empresário Gary Johnson, 69 anos. Ele governou o Estado do Novo México (1995-2003) e foi candidato presidencial em 2012 e 2016. Na disputa mais recente, Johnson obteve o maior número de votos para um libertário — 4,4 milhões. O republicano Donald Trump acabou eleito, enquanto a democrata Hillary Clinton ficou em segundo lugar.
Viva la libertad
O economista argentino Javier Milei, 51 anos, é o político libertário de maior relevância na América Latina. Nas eleições legislativas disputadas no ano passado, El Peluca foi eleito deputado federal pela Cidade Autônoma de Buenos Aires. La Libertad Avanza, coalizão da qual faz parte, obteve 17% dos votos. Juntos por El Cambio (47%), da oposicionista Maria Eugenia Vidal, e Frente de Todos (25%), do governista Leandro Santoro, ficaram nas primeiras posições.
Para Milei, o Estado deve abster-se das atividades que podem ser desempenhadas pela iniciativa privada. O economista defende a união civil entre pessoas do mesmo sexo, a legalização das drogas e o armamento da população. Ao mesmo tempo, posiciona-se contrariamente ao aborto, à pena de morte, à ideologia de gênero, à arrecadação de impostos e às cotas para minorias.
O apoio popular transformou Milei em um dos favoritos à Casa Rosada nas eleições de 2023. Mas não é apenas a preferência dos hermanos que tornou o economista uma opção viável para liderar o país. A ascensão meteórica ocorre ao mesmo tempo em que o kirchnerismo desfalece. Reportagem publicada na Edição 68 da Revista Oeste mostra a catastrófica gestão dos peronistas, que foram emparedados pela pandemia e pela crise política. A Argentina adotou um dos mais severos lockdowns do mundo, mas os índices de contaminação e mortes não arrefeceram.
Na economia, a situação não fica melhor. O governo fechou as fronteiras, impediu a abertura do comércio e trancou a população dentro de casa. Poucos meses depois, com o fim das restrições, os principais índices econômicos do país ficaram em frangalhos. A taxa de inflação anual, superior a 70%, é um símbolo da inépcia do presidente Alberto Fernández.
Para a cientista política Gloria Alvarez, coautora do livro O Embuste Populista, o sucesso de Milei na Argentina dependerá da forma como o economista se comportará diante dos políticos de carreira. “Ele precisa continuar a defender a liberdade, embora as pessoas ao redor imponham pautas coletivistas”, observou. “Muitas vezes, os libertários chegam aos governos e, na hora de governar, rodeiam-se de covardes e medíocres. O resultado disso é que não conseguem promover a agenda libertária. Ele precisa ser intransigente.”
Campanha no semáforo
Em 2016, milhões de brasileiros foram às ruas clamar pelo impeachment de Dilma Rousseff (PT). Na ocasião, a crise institucional, política e econômica causada pela cleptocracia petista inflamou aquelas que se tornariam as maiores manifestações da história republicana.
Cartazes com mensagens antipetistas eram empunhados aos montes pelos manifestantes. Entretanto, não foi apenas a insatisfação com o Partido dos Trabalhadores que estampou as cartolinas. “Menos Marx, Mais Mises”, um bordão desconhecido até aquele momento, passou a ser registrado pelas câmeras da imprensa. A frase era vista não apenas em cartazes, mas também em faixas, camisetas e adesivos. Posteriormente, o lema se tornou título do livro Menos Marx, Mais Mises: O Liberalismo e a Nova Direita no Brasil, de Camila Rocha. A obra trata do recrudescimento dos movimentos políticos e intelectuais de direita que surgiram naquele período.
De lá para cá, os libertários conquistaram seu espaço nas universidades e na política. O empresário Bruno Souza (Novo), por exemplo, foi eleito vereador em Florianópolis meses depois do impeachment de Dilma. “Percebi a falência da nova matriz econômica e das ideias estatizantes que o PT havia imposto sobre nosso país”, disse o catarinense de 38 anos.
A primeira campanha eleitoral de Souza foi inusitada. Por falta de dinheiro, o empresário decidiu pedir o apoio dos eleitores nos semáforos do município. “Enquanto o sinal estava fechado, passava de retrovisor em retrovisor e divulgava minhas ideias”, revelou. “Quando o sinal abria, usava o celular para interagir com os eleitores nas redes sociais. A campanha deu certo.”
Enquanto vereador, Souza impediu a proibição de aplicativos de transporte de passageiros; aprovou uma lei que acabou com a necessidade de quase mil licenças e alvarás para a abertura de negócios; trabalhou por uma emenda parlamentar que economizou R$ 5 milhões em cargos comissionados; economizou 90% da verba de gabinete, de R$ 27,8 mil por mês; e abriu mão dos carros oficiais.
Em 2018, o catarinense optou por deixar o cargo de vereador e concorrer a uma vaga de deputado estadual. Acabou vencendo a disputa. Ao abrir mão dos benefícios e dos privilégios reservados aos parlamentares, Souza economizou R$ 4 milhões dos cofres públicos — apenas no atual mandato. Nas eleições de outubro, o adepto do libertarianismo é candidato a deputado federal.
“Farra da lagosta”
Gilson Marques (Novo), 41 anos, foi eleito deputado federal por Santa Catarina em 2018. “Chegando ao Congresso, percebi que era uma falácia a história de que os parlamentares não trabalham”, observou. “É o contrário. O Brasil está desfalecendo porque os parlamentares trabalham demasiadamente. Muitos corruptos e incapazes geram despesas para o povo brasileiro.”
Na atual legislatura, Marques foi autor da emenda que pôs fim à “farra da lagosta” no Supremo Tribunal Federal (STF) e proibiu a compra de itens de luxo nas licitações públicas. A iniciativa foi uma resposta à Suprema Corte, que, em 2019, solicitou “serviços de fornecimento de refeições institucionais” avaliados em R$ 1,1 milhão. O cardápio incluía café da manhã, almoço e jantar. Na lista, estavam produtos como lagosta, camarão, bacalhau, frigideira de siri, moqueca, arroz de pato, vitela assada, codorna assada e carré de cordeiro.
É por testemunhar licitações desse tipo que Marques diz ser libertário. “De tudo aquilo que é roubado do suor alheio, 70% são destinados à manutenção do próprio Estado”, disse o parlamentar, referindo-se aos impostos. “E os 30% restantes ficam nas mãos dos políticos, que escolhem para quem vão mandar o dinheiro. “Não tem como não pensar que, se o Estado não existisse, tudo seria melhor.”
Operação Cavalo de Troia
Recentemente, a Folha de S.Paulo publicou uma reportagem intitulada “Candidato do Novo diz que imposto é roubo e sonegação é legítima defesa”. O autor da frase é Dennys Xavier, 44 anos, professor de filosofia na Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e ex-coordenador da assessoria do Novo na Câmara. Ele é candidato a deputado federal nas eleições de outubro.
“Quando fui a Brasília, percebi como a máquina pública se comporta”, disse Xavier, ao explicar os motivos que o fizeram entrar na política. “É difícil mudar o sistema, especialmente em um país com tradição coletivista. Ou brigamos eternamente do lado de fora, mostrando as coisas erradas na máquina estatal, ou ingressamos na política e causamos o maior dano possível.”
Xavier ressalta, no entanto, que é remota a probabilidade de os projetos libertários serem aprovados no Congresso Nacional. “Não estou preocupado com a aprovação de pautas, mas, sim, com evitar os males”, observou. “Não tenho a ilusão de que irei promover uma redução do Estado. Estamos em uma etapa anterior do processo, que é criar obstáculos para o aumento da máquina.”
“Basta ler os autores libertários”
O economista e empresário Paulo Kogos (PTB), 36 anos, foi um dos primeiros brasileiros a disseminar as ideias libertárias no país. Seu canal no YouTube, Ocidente em Fúria, tem aproximadamente 160 mil inscritos. Ele é candidato a deputado estadual por São Paulo nas eleições de outubro.
“Não podemos pecar pela omissão”, afirmou Kogos. “O modernismo de fato centraliza muito poder nas mãos dos políticos. Estamos caminhando no sentido contrário ao da política sábia, que é o fortalecimento da sociedade e a redução do poder centralizador dos governos.”
Ao ser interpelado se não seria um contrassenso a participação de libertários na política, o empresário respondeu: “Um policial libertário pode fazer parte de uma corporação estatal”, argumentou. “Desde que aplique a força somente contra criminosos reais, como sequestradores, e não confisque a mercadoria de ambulantes honestos. Um político libertário precisa apenas revogar as leis injustas e promover leis justas, no sentido de proteger os direitos naturais do cidadão e reduzir o poder estatal. Não há contradição nisso.”
Ideias radicais
O empresário Raphaël Lima, 32 anos, é proprietário do Ideias Radicais, maior canal libertário do YouTube. Há oito anos, o curitibano explica as ideias libertárias por meio de linguagem simples e direta. “Costumo dizer que o libertarianismo entra primeiro pelo coração e pelo fígado”, afirmou, ao lembrar situações nas quais teria sido prejudicado pela burocracia estatal.
Depois das eleições de 2018, Lima decidiu expandir suas atividades e passou a oferecer treinamento para candidatos libertários. “Percebi que muitos políticos tinham boas intenções, mas não sabiam fazer campanha eleitoral”, explicou. “E, onde há demanda, há oferta. A partir de 2020, treinamos vários candidatos. Em 2022, com um método consolidado, vamos ajudar diversos políticos.”
O empresário ressalta, contudo, que não aceita ser pago com recursos do Fundo Eleitoral. “Somos pagos pelas pessoas físicas dos candidatos”, disse. “O que mais fizemos foram os ‘revogaços’. Isso significa encaminhar leis inúteis aos nossos parceiros, para possivelmente serem revogadas. Os parlamentares avaliam se a legislação é constitucional, se causa danos aos cidadãos e às empresas e se abre espaço para corrupção. Até junho deste ano, por exemplo, foram revisadas mais de 100 mil leis. E 2 mil ou 3 mil foram encaminhadas para revogação.”
Nova era
Segundo o economista e professor Ubiratan Jorge Iorio, colunista de Oeste, a entrada de libertários na política será benéfica para o Brasil. “O Congresso deve conter todos os tipos de correntes de pensamento”, salientou. “Os libertários estavam completamente ausentes. Uma democracia não pode prescindir dessa diversidade de pensamentos. Por mais que discordemos das visões de cada uma delas, é importante que todas estejam presentes nas discussões.”
Iorio argumenta que a ascensão dos libertários ocorreu em virtude dos “anos de trevas” que duraram de 2003 a 2016, quando o PT comandou o país. “Isso serviu para mostrar que a máquina estatal, na verdade, é nossa inimiga”, observou o economista. “O Brasil de hoje é diferente do Brasil de dez ou 15 anos atrás.”
Edilson Salgueiro, Revista Oeste