sábado, 1 de agosto de 2020

Lei de Gerson na guerra fria, defende Marcelo Tognozzi

Vivemos a Segunda Grande Guerra Fria. Com uma diferença fundamental: a China não é a antiga União Soviética. Nunca será. A briga não é movida por ideologia, mas por mercados e, principalmente, alimentos. Estados Unidos e a China disputam uma liderança mundial com meios e métodos muito distintos daqueles tempos do pós-guerra. Nos anos 1950 e 1960, auge da cortina de ferro, o Brasil não era visto nem percebido como player do mercado mundial de alimentos. Vendia café, açúcar, minérios. Agora o país está entre os três maiores produtores de alimentos. Com uma população de 210 milhões de habitantes, é capaz de produzir comida para 1,5 bilhão de seres humanos. Comparado ao Brasil de hoje, aquele de 60, 70 anos atrás não passava de uma quitanda. O salto de qualidade e produtividade do Brasil no agro começou no fim dos anos 1960, se expandiu durante as décadas seguintes pelas mãos da Embrapa até chegarmos ao século 21 transformados em provedores essenciais de alimentos. O Brasil é um dos três players globais mais relevantes do agronegócio, ao lado dos Estados Unidos e da China. Esta condição influi tanto na economia quanto na diplomacia. Theodore Caplow no seu best seller “Dois contra um: teoria das coalisões nas tríades”, lançado nos anos 1950, mostra como um país com menor capacidade bélica e menor poder econômico pode tirar vantagem da briga de dois gigantes ora pendendo para um lado, ora para o outro. Os negócios do Brasil com a China são 7 vezes maiores do que os com os Estados Unidos. Enquanto a China comprou US$ 34 bilhões em produtos do agro brasileiro em 2019, os Estados Unidos ficaram com U$ 5 bilhões. O que pode fazer um país na situação do Brasil? Aplicar nossa famosa lei de Gerson e tirar vantagem nas relações com os dois lados usando toda a habilidade e conhecimento acumulado pela diplomacia profissional do nosso Itamaraty nos últimos 2 séculos. Não estou falando de neófitos, mas de profissionais da estirpe de Paulo Tarso Flecha de Lima, que revolucionou nosso comércio exterior. O Brasil sempre foi ousado sem ser exibido. É uma herança que vem de Rio Branco, Joaquim Nabuco e Oswaldo Aranha. Reconheceu a independência de Angola e Moçambique, reatou com Cuba na primeira oportunidade e tentou abrir caminho rumo ao mercado chinês ainda no governo Jânio, que renunciou quando seu vice João Goulart estava em Pequim tentando iniciar um namoro Mao Zedong. Não faz sentido o Brasil adotar uma política externa de alinhamento automático aos Estados Unidos com um discurso contra a diplomacia ideológica dos governos do PT, quando na realidade estão repetindo a receita. Este tipo de diplomacia serve ao governo e não ao Estado. A paz social na China depende do abastecimento. Seria impossível controlar 1,3 bilhão de chineses esfomeados. O país cresceu demais, produziu riqueza demais e isso gerou uma demanda cada vez maior pela universalização do acesso à comida e alimentos de qualidade. Quem já foi à China sabe que os mercados são fartos. No mercado de carne de Shangai, por exemplo, os produtos brasileiros são conhecidos pelo número do SIF. Ali se pode comprar desde carnes nobres até pés de galinha, uma iguaria local, sem um defeito sequer e com unhas parecendo saídas de uma manicure. Vale a pena ler o livro China-Brazil: partnership on agriculture and food security, que pode ser baixado de graça. Editado pela Escola de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP), China Agricultural University e College of Economics and Management, estas 2 últimas instituições chinesas. O livro é um banho de realidade para quem vive este momento em que verdades e mentiras se confundem na luz baça das redes sociais e dos interesses difusos das ideologias de plantão. É possível entender como e por que comercio agrícola entre os dois países aumentou nada menos que 20% ao ano nos últimos 20 anos. Mostra de forma clara e objetiva como o crescimento da população urbana chinesa e o mergulho da China na produção de tecnologia abriu as portas para um Brasil de oportunidades geradas a partir de necessidades cotidianas. Dos U$$ 100 bilhões exportados pelo agro brasileiro, pelo menos US$ 70 bilhões são produtos que competem diretamente com aqueles produzidos nos Estados Unidos. Enquanto a economia americana se fecha sob o argumento de preservar empregos, a China não para de comprar comida brasileira. Nossa soja em grão, café, algodão e celulose entram sem restrições na China. Com o crescimento econômico e as melhorias nas condições de vida dos chineses, eles passaram a comprar mais celulose do Brasil – no ano passado foram US$ 3,3 bilhões – porque, entre outros motivos, estão consumindo mais papel higiênico. Nesta Segunda Grande Guerra Fria não existem mocinhos ou bandidos, mas competidores em geração de conhecimento e tecnologia de ponta, seja para a produção de celulares e redes móveis ou vacinas e cosméticos. Se deixar os profissionais da diplomacia trabalharem, o Brasil pode se colocar na situação daquele dono do saloom dos filmes de faroeste: os brigões sempre vão dar uma parada ali para comer e beber alguma coisa e, assim, ele ganha dos dois lados. O maior talento do Brasil é produzir comida. É o que tem nos segurado ao longo das últimas décadas, independente da competência do governante de plantão e sue equipe econômica. O agro brasileiro ainda vai crescer mais e influir mais na política e na economia. Isso é inexorável. O que se percebe, nestes tempos em que nossa política externa não é tem ido muito além de bater continência para os americanos, é que nossos aliados do norte conseguiram neutralizar o potencial brasileiros de tirar proveito da tríade com movimentos pendulares. O anticorpo para esta situação já está sendo criado pelos próprios produtores: um movimento discreto de uma diplomacia paralela, porém responsável, que ignora bobagens cometidas pela oficial, numa luta para ampliar mercados, receita e ao mesmo tempo manter o Brasil como ator relevante no jogo de poder mundial, não pela capacidade de ameaçar, é claro, mas pela capacidade de prover. Poder360