domingo, 9 de agosto de 2020

‘Atraso no 5G pode gerar exclusão econômica global’, diz presidente da Qualcomm

 Brasileiro que lidera gigante dos chips afirma que tecnologia vai além de velocidade no celular e que ela transformará indústrias


Cristiano Amon, presidente global da Qualcomm 

Cristiano Amon, presidente global da Qualcomm 

 

Cristiano Amon, 50, está testemunhando de perto a quarta transição de geração de tecnologia de redes de celulares. Para ele, a chegada do 5G, porém, não é a mais importante apenas pelo fato de ser presidente global de uma das principais empresas do ecossistema de telefonia móvel, a americana Qualcomm, que produz os chips da maioria dos smartphones no mundo.

O paulista de Campinas, que está desde 1995 na empresa onde se tornou presidente em 2018, explica que o 5G não se trata apenas de uma ferramenta para aumentar as velocidades de conexões dos telefones. A tecnologia seria um pilar de transformação para diferentes segmentos da economia global – o que significa a ampliação de desigualdades econômicas para os que a adotarem com atraso. 

Ao Estadão, ele analisou a atuação do Brasil para adotar o 5G – para ele, estamos atrasados, mas ainda é possível correr atrás do prejuízo. Falou também do papel do 5G na disputa entre EUA e China, do papel da Qualcomm na guerra comercial entre os países e do futuro da empresa num cenário global de retração de investimentos e queda no consumo. Confira.

O Brasil era visto como um dos países líderes no desenvolvimento do 5G. Porém, atualmente, nem o leilão de frequências é capaz de realizar. O que aconteceu?

Em parte, houve uma aceleração na adoção da tecnologia. O cronograma de operadoras e empresas do ecossistema de EUA, Coreia, Japão e China previa o lançamento em 2020, mas isso aconteceu em 2019. O que vemos acontecer é há uma separação entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento. Sem quase nenhuma exceção, o 5G está sendo desenvolvido e implantado primeiro no primeiro grupo, o que acho uma pena. A situação do Brasil foi a mesma da França: quem não estava dentro do processo de aceleração e não conduziu seus leilões de frequência foi pego pela pandemia e aí atrasou.

É possível reverter o atraso?

Acho que dá tempo. A demanda existe e as empresas estão se mexendo, como no caso da Claro. Para ter todo o potencial da tecnologia, você precisa de banda média, banda milimétrica e banda baixa, que é o que a Claro está fazendo. Um único leilão não será suficiente. É importantíssimo para os envolvidos aqui no Brasil terem o sentimento de que não é possível atrasar mais. 

O 5G anunciado por Claro e Vivo, que usa tecnologia DSS é uma ‘gambiarra’?

Não é ‘gambiarra’! Achei uma iniciativa importante. Mostra que o mercado não espera. Essa tecnologia está sendo usada em vários países. O 5G foi criado para ter novas frequências e converter as frequências já existentes. Todas as redes de 5G vão ter o que chamamos de ‘bolo de noiva’: todas as frequências de 4G serão convertidas pela tecnologia DSS. Depois tem a banda média e a banda milimétrica. Países começam de forma diferente. Os EUA começaram na banda milimétrica; China e Europa na banda média;  e o Brasil na banda baixa. Eventualmente todos terão todos esses níveis. 

Qual é o impacto para o Brasil por estar atrasado com a adoção da tecnologia? 

Vale a pena falar do contexto. Quando o 4G apareceu, os EUA foram o primeiro país a montar uma rede nacional de 4G. Na época, havia muita discussão sobre sua utilidade, mas  enxergou-se que era possível ter na palma da mão um computador com acesso à banda larga. Em função disso, várias empresas da economia digital foram criadas nos EUA, como FacebookInstagramUber e outras. A Europa, que era um líder em wireless na época do 3G, perdeu a liderança e viu várias dessas empresas da economia digital aparecer nos EUA. O resultado é que a Europa não tem essas empresas. Com o 5G, ninguém quer ficar para trás, pois a tecnologia é mais abrangente e os países percebem o seu valor estratégico. O 5G vai transformar indústrias. Se elas não tiverem acesso a isso, deixarão de ser competitivas. Historicamente, a cada nova geração de redes móveis, o Brasil preferiu esperar a tecnologia se tornar totalmente desenvolvida para chegar a um custo acessível. Talvez, valha a pena repensar isso. E vale entender o benefício da tecnologia para rever a carga tributária dela.  

Nesse contexto, como a Qualcomm enxerga a disputa comercial entre EUA e China e seus respectivos efeitos na adoção do 5G? 

Se você tem uma tecnologia cujo único papel é aumentar a velocidade dos smartphones, você tem uma certa discussão. Se você olhar pra essa tecnologia como parte do sistema de TI do setor elétrico, incluindo usinas nucleares, e se olha para ela como o principal ingrediente da economia digital, a conversa é outra. Diferentes indústrias têm diferentes critérios de segurança e de quem são seus parceiros e fornecedores. Então, é natural que o 5G acabe aparecendo nas discussões. 

Como isso pode ter impactos para a empresa?

A Qualcomm é um agente de estabilidade entre os dois países. As ambições das empresas chinesas, como Xiaomi, Oppo e Vivo, é crescer globalmente. Então, a  China precisa de parceiros que tenham acessos a esses mercados. No pico das tensões, aparelhos da Oppo e da Motorola, que pertence à Lenovo, e também é chinesa. Quando você olha para o 5G no setor setor industrial, os equipamentos não podem ser feitos com especificações para cada país, como faz com celulares. Não há escala, então é necessário um parceiro global. Para os EUA, quanto mais chips a Qualcomm vender, melhor. Assim, a balança comercial vai na direção que os EUA querem. Quanto a propriedade intelectual, que é sempre um tópico de discussões, temos um modelo de licenciamento e nosso clientes na China pagam por isso. 

A tecnologia costuma refletir sociedades. Em um País como Brasil, como o 5G  pode amplificar as desigualdades?  

A pergunta tem duas partes. A primeira é que o 5G pode causar exclusão econômica entre países. E a segunda é que isso se reflete nas pessoas. A agricultura, por exemplo, setor no qual o Brasil é líder, será transformada pelo 5G. Você passará a ter diferenças nos custos e na produtividade. Muitos países que não são competitivos hoje podem se tornar. Ou, pelo menos, se tornarem independentes. O mesmo vale para a indústria. Há anos, discute-se a viabilidade da indústria automotiva no Brasil. O 5G também mexerá nesse setor. Assim, quem não tem acesso a essas ferramentas poderá não participar do setor produtivo, e isso pode gerar uma grande exclusão econômica quando a tecnologia estiver madura. 

Parte do futuro da Qualcomm está amarrado ao 5G. Dado o pacote de incertezas econômicas atuais, que trazem desde a queda em investimentos nas redes até a diminuição no ritmo de compra de telefones celulares, como a empresa consegue traçar uma estratégia para o futuro?   

O mercado de celulares obviamente caiu, em alguns mercados até 30%, pois não há condições econômicas - em alguns casos, as pessoas não estão saindo de casa para fazer compras. Por outro lado, a pandemia gerou uma nova onda de crescimento e de relevância de setor de telecom. Quase não precisamos explicar mais o que é possível fazer com a  tecnologia - em 2 trimestres tivemos um amadurecimento que levaria cinco anos. Após conectarem funcionários, como vimos com o home-office, as empresas estão indo para a fase seguinte, que é de conectar ativos. Há uma aceleração de transformação digital. Assim, temos aumentando nossos investimentos. Reiteramos nossa projeção de 2019, bem antes da pandemia, de termos entre 175 milhões e 225 milhões com 5G vendidos em 2020.

Bruno Romani - O Estado de S.Paulo