sexta-feira, 7 de agosto de 2020

"A corte que se tornou monstro", por Ana Paula Henkel

 O que os novos editores do STF pregam não é apenas uma Constituição “viva”, mas uma Carta com 11 cabeças, 22 tentáculos e que se alimenta de lagostas


Qual é o papel adequado de um juiz de uma Suprema Corte? Para o juiz norte-americano Antonin Scalia, um juiz deve apenas aplicar a lei, jamais legislar ou atuar sem ser provocado. Nomeado pelo quadragésimo presidente norte-americano, Ronald Reagan, Scalia serviu à Suprema Corte dos Estados Unidos de 1986 até pouco antes de sua morte, em 2016, e era considerado um dos pilares jurídicos e intelectuais do originalismo e textualismo na defesa da Constituição dos Estados Unidos. Ou seja, da doutrina segundo a qual “vale o que está escrito”.

O textualismo, na obviedade do nome, significa que a lei está no texto da própria lei. Junto com o originalismo, que concede a esse texto o exato significado que ele conduzia no momento em que foi aprovado, a linha de ação de juízes que prezam por essa conduta mostra apenas o mínimo do que um país sério merece de suas cortes: leis não são “organismos vivos” a ser moldados por modismos, pela “voz das ruas” ou por caprichos de juízes. Scalia era irredutível quanto a isso: “As palavras têm significado. E seu significado não muda”. O trabalho e a obra de Antonin Scalia são tão permanentes que até políticos da ala mais progressista do Partido Democrata rendem homenagens ao juiz conhecido por seu tradicionalismo.

Não que eu seja uma expert em direito, mas, diante da atual juristocracia que vivemos no Brasil, a ditadura de togas em que se tem como lei os desejos ensandecidos de quem nunca recebeu um voto, fico imaginando se nossas figuras togadas acadêmico-militantes sabem quem foi Antonin Scalia e o que textualismo significa. Se ultimamente nem a Constituição parecem conhecer, parece-me pouco provável.

Para os pigmeus morais que ocupam nosso STF, só no grito e no gogó

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Infelizmente, não acredito que veremos um intelectual e ministro como Scalia no Brasil, onde juízes intelectuais são joia rara. Nossas criaturas togadas poderiam ter saído das páginas do O Príncipe, de Maquiavel: “É desejável ser amado e temido, mas, caso seja necessário escolher apenas um deles, é mais seguro ser temido do que amado, pois as pessoas temem mais ofender quem se faz temer do que quem se faz amar”. Quem não tem Scalia caça com Toffolis e Alexandres. Para os pigmeus morais que ocupam nosso STF, só no grito e no gogó.

Gritaria para eles, mordaça para nós. Os meninos mimados que resolveram brincar de democracia agora resolveram brincar de editores da nação. Segundo Dias Toffoli, a Suprema Corte do Brasil pode editar o que podemos falar, o que podemos publicar, o que podemos ler e ouvir. O que os novos editores pregam não é apenas uma Constituição “viva”, como Scalia alertava ser uma afronta às engrenagens democráticas, mas uma Carta com 11 cabeças, 22 tentáculos e que se alimenta de lagostas.

A inspiração maquiavélica, no entanto, não é luxo para nosso mostrengo de 11 cabeças. Marx mantinha as páginas de O Príncipe ao lado da cama, Antonio Gramsci e sua filosofia tão presente na esquerda brasileira são a descrição de Maquiavel, e Napoleão Bonaparte eternizou pensamentos sobre a obra em suas anotações. Os revolucionários de toga bebendo na fonte dos revolucionários do mundo. Aww. Emoji de coração.

Como explicar a ação dos editores do STF ao juiz Scalia? “What?”


Depois da edição de nossa Constituição, ao vivo e em cores para todo o Brasil, pelo editor Ricardo Lewandowski no impeachment de Dilma Rousseff, nossos editores capricharam na hora extra. Já anularam condenações da Lava Jato, já libertaram bandidos, já meteram a colher na cumbuca de assembleias estaduais, já proibiram operações policiais em comunidades, já expediram mandados de busca e apreensão contra aliados do governo, já blindaram opositores do governo contra mandados de busca e apreensão, já cancelaram delações premiadas que colocavam amiguinhos da Corte na lama do parquinho, já soltaram o médico estuprador Roger Abdelmassih, Eike Batista, Sérgio Côrtes, Adriana Anselmo, Anthony Garotinho…

Gilmar Mendes, um dos príncipes maquiavélicos encantados da Corte e que recentemente declarou que o Exército brasileiro está se associando a um genocídio na pandemia, até meados de 2018 havia libertado quase 40 presos da Lava Jato. Segundo o editor Mendes, muitos desses acusados de crimes graves que envolviam quantidades astronômicas de dinheiro não apresentavam ameaça à sociedade e, por isso, as prisões poderiam ser substituídas por “medidas restritivas menos gravosas”.

Depois veio o inquérito bizarro das fake news do editor Alexandre de Moraes, com capítulo especial à parte para a prisão tirânica de jornalistas que criticaram a Corte e alguns editores. Moraes mandou bloquear 16 contas de aliados do presidente Jair Bolsonaro no Twitter e 12 perfis do Facebook, violando diretamente o artigo 5º da Constituição Federal — “é livre a manifestação do pensamento” —, com multa diária de R$ 20 mil para as empresas caso não obedecessem imediatamente à sua birra, digo, decreto. O editor-tiranete da Corte ampliou o alcance do bloqueio das contas para fora do Brasil, baseando-se em um inquérito ilegal, imoral e inconstitucional. Já pensaram explicar esse processo a uma pessoa da estirpe e da seriedade do juiz Scalia? “What?”

“Você teria de ser um idiota para acreditar no argumento da ‘flexibilidade’ da Constituição”


Mas nem só de ativismos ideológicos e esperneios midiáticos para a torcida progressista vivem nossos editores maquiavélicos. Entre interferências em outros poderes, há espaço e tempo para discutir cigarros com sabor, sacolas plásticas para supermercados e demais urgências nacionais desse porte que não envolvam os encrencados com a lei que contam com foro privilegiado.

Esta semana, a brincadeira de nossos supremos companheiros no parquinho da democracia foi a de que a delação premiada do ex-ministro Antonio Palocci não poderá ser usada na ação penal contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Os ministros entenderam que Sergio Moro, então juiz da Lava Jato, agiu de forma ilegal e por motivação política ao anexar a colaboração de Palocci aos autos. Enquanto Edson Fachin votou por manter a delação do ex-ministro no processo contra o ex-presidente, os editores Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes votaram pela exclusão das provas dessa ação penal. Entenderam a edição?

Antonin Scalia, um norte jurídico para democratas e republicanos da Suprema Corte da mais sólida democracia do mundo, era muito claro em relação a suas decisões: “Se você for um juiz bom e fiel, deve se resignar ao fato de que nem sempre gostará das conclusões a que você chega. Se você gosta delas o tempo todo, provavelmente está fazendo algo errado”. E completa: “Você teria de ser um idiota para acreditar no argumento da ‘flexibilidade’ da Constituição”.

O Brasil sério não precisa de fake news para constatar o supremo vexame quase diário dos editores companheiros do STF. Só as news bastam.


Revista Oeste