O Brasil precisa parar de culpar as incertezas —como o cenário eleitoral conturbado em 2018 e as dúvidas em relação à aprovação da reforma da Previdência— pelo “crescimento estável, porém medíocre” da economia. A opinião é de Tony Volpon, economista-chefe do banco suíço UBS, no Brasil.
Para ele, que foi diretor do Banco Central no segundo mandato de Dilma Rousseff, o governo de Jair Bolsonaro exagerou em relação ao impulso que a reforma da Previdência daria à economia.
“Ela é 100% necessária, mas não vai detonar um processo forte de retomada”, diz.
Embora concorde com o diagnóstico liberal sobre a importância da continuação de reformas para reduzir o peso do Estado na economia, Volpon destoa da oposição a qualquer investimento público para incentivar a recuperação.
“Acho que o gasto adicional em obras paradas de infraestrutura seria bem-aceito pelo mercado. O Paulo Guedes [ministro da Economia] tem credibilidade para apresentar algo assim”, afirma.
Segundo Volpon, a recessão do investimento não chegou ao fim, apesar de esse componente da demanda ter registrado expansão no segundo trimestre, como indicaram dados do PIB (Produto Interno Bruto)divulgados na quinta-feira (29) passada.
O analista tem chamado a atenção para a necessidade de o Brasil entender melhor as mudanças que têm levado a uma “desglobalização” do mundo, com os Estados Unidos em uma ponta e a China na outra.
A questão é analisada por ele no livro “Pragmatismo sob Coação: Petismo e Economia em um Mundo de Crises”, recém-lançado pela editora Alta Books.
Economistas têm atribuído o crescimento estável, porém baixo, do país a uma recessão do investimento, que voltou a crescer no segundo trimestre. Essa recessão acabou? Não, quando eu digo recessão do investimento, estou pensando no nível, não na taxa de crescimento. Embora o número tenha tido um crescimento relativamente robusto, ele simplesmente está corrigindo a queda dos trimestres anteriores. Ele continua num patamar muito baixo.
Por que o investimento não reage? Primeiro, a gente tem de lembrar que nossa recessão aconteceu após um período de crescimento muito positivo durante dez anos, em que a relação entre crédito e PIB quase dobrou.
E quais foram as consequências disso para o período pós-crise? Uma dívida que parecia sustentável acaba virando um problema de superendividamento, que a economia precisa resolver. E isso leva tempo. Mas essa era uma boa explicação para o que vivemos em 2016, 2017, 2018. Agora já estamos em 2019.
Já deveríamos estar vendo maior vigor? Sim. Nos últimos anos, os economistas recorreram muito às incertezas para explicar. Eu mesmo defendi essa tese no ano passado, pela incerteza eleitoral. Neste ano, o foco foi a reforma da Previdência. Sempre há incertezas, e elas são, de fato, importantes para decisões de investimento. Mas, como elas têm se resolvido e não estamos vendo um grande dinamismo, acho que não podemos mais culpar esses fatores pela totalidade da situação.
Que outros fatores são importantes? Houve uma quebra da forte correlação que havia entre nossos termos de troca —que é o preço das exportações em relação ao das importações—e investimentos, que eram muito dependentes do que acontecia na China.
Em 2014 e 2015, a economia chinesa teve uma crise, mas, em 2016, veio uma forte recuperação. Seria de esperar uma recuperação boa dos investimentos no Brasil, que não ocorreu.
Talvez o grande aumento do nível de crédito na economia brasileira a tenha tornado muito mais sensível ao ciclo de crédito e menos sensível ao de commodities [matérias-primas]. Estamos mais reféns de fatores domésticos do que externos. A longo prazo, talvez isso não seja ruim.
O segundo fator tem a ver com o grande crescimento do gasto e do crédito públicos na segunda metade da era petista, na fase de Guido Mantega [ministro da Fazenda entre 2006 e 2015]. Isso deixou o setor privado dependente dessas políticas.
O governo apostou que haveria um crescimento posterior, que aumentaria a receita e pagaria por esses gastos, o que não ocorreu.
Qual foi a consequência disso? A recessão e uma crise fiscal. Joaquim Levy [ministro da Fazenda em 2015] começou a retirar o apoio ao setor privado. Isso continuou com o [Henrique] Meirelles [ministro da Fazenda entre 2016 e 2018] e, agora, com o Paulo Guedes.
Só que essa transição não é imediata. A metáfora que uso e os clientes adoram é o que aconteceu com o povo hebreu quando saiu do Egito. Escaparam da opressão do faraó, mas não chegaram imediatamente à Terra Prometida. Passaram pelo deserto e foi muito duro.
Então, estamos em um período difícil. Toda vez que o BNDES retira parte do crédito, ele não é reposto, em uma relação de um por um, pelo crédito privado. Está acontecendo, mas de uma forma lenta e gradual. Por isso, temos um crescimento medíocre, mas de melhor qualidade, porque não depende de um aumento insustentável de endividamento do Estado.
Muito dos movimentos recentes —como o grande aumento de emissão de títulos privados securitizados e de emissão na Bolsa de Valores— está ocorrendo pela forte queda de juros. Isso está levando o investidor brasileiro a procurar novas aplicações, que são produtivas, e não frutos do rentismo.
É uma passagem difícil, demorada, que depende da continuidade das reformas, porque precisamos ter um ambiente de negócios bom para que o novo modelo mais baseado no mercado funcione.
O que é necessário para que o país não morra no deserto durante essa passagem? O investimento público foi muito comprimido por essa estratégia de jogar quase todo o custo do ajuste fiscal no gasto discricionário. Tudo isso é muito ruim, e acho que o governo deveria fazer alguma coisa. Obviamente, por parte da política monetária já vem sendo feito, e o espaço fiscal certamente é limitado. Mas isso não quer dizer que o governo não poderia tentar fazer investimento público em infraestrutura.
Agora, há um ambiente hostil na economia global nos próximos trimestres. Isso pode ter um impacto político sobre a vontade de você continuar a seguir nesse processo lento e gradual de fazer reformas.
A sociedade brasileira como um todo tem de entender que é preciso ter paciência. Não há mágicas, não há atalhos. Não há espaço fiscal para a gente voltar para um modelo de crescimento liderado pelo Estado.
Que espaço existe hoje para investimento público? Acho que o gasto adicional focado em retomar as obras paradas de infraestrutura seria bem-aceito pelo mercado neste momento. Tem de tentar compatibilizar isso com a existência de uma meta fiscal e com o teto de gastos. Abre uma caixa de pandora porque, nos governos petistas, começaram um processo de retirar várias coisas da meta fiscal, que acabou levando a uma distorção dos gastos.
Outros economistas liberais têm dito que qualquer retomada de investimento público pode levar a uma crise de confiança. Eu, particularmente, discordo.
Por quê? Acho que depende muito de como ele é apresentado, do tamanho, da focalização e, obviamente, da credibilidade do agente que o representa. Acredito que o Paulo Guedes tem a credibilidade para apresentar algo assim.
O governo exagerou em como a reforma da Previdência ia impactar a economia. Ela é 100% necessária, mas não vai detonar um processo forte de retomada. Da mesma forma, vejo economistas heterodoxos exagerando no papel que um pacote de investimentos em infraestrutura poderia ter.
A infraestrutura tem de passar pelo processo de concessões, e ele é lento no Brasil. Então, enquanto isso não ocorre, o uso de uma quantidade de recursos para retomar obras paradas, que teriam impacto no emprego e na produtividade, seria bem-visto pelo mercado.
Como a mudança da posição da China no mundo, que você analisa no livro, tende a nos afetar? Grande parte da tragédia brasileira, nos últimos 20 anos, foi não entender o fator China.
A gente não tem que ver a figura de Donald Trump [presidente americano] como o maior agente da guerra comercial [entre Estados Unidos e China]. Temos que entender esse processo como uma crescente rivalidade geopolítica entre essas duas potências, que vai durar décadas.
Desde os anos 1970, os EUA têm consistentemente ajudado a China. Sem o forte apoio americano, a China não teria entrado na OMC [Organização Mundial do Comércio].
Ironicamente, os EUA começaram a ver a China como rival depois da crise, quando começou uma certa decadência do modelo econômico de crescimento chinês. Em parte, porque o governo chinês adotou uma política muito mais agressiva e nacionalista.
Se você olhar o que os pré-candidatos democratas estão falando da China, em alguns pontos, não há diferença em relação ao que o Trump está dizendo. Mais e mais, haverá uma divisão, uma “desglobalização” da economia mundial em blocos. Vai começar um processo de divisão tecnológica e de comércio entre as duas potências.
Cada país vai ter que negociar isso. No caso brasileiro, vamos basear nosso desenvolvimento tecnológico em quem? Ambos os parceiros são muito importantes. Isso pode implicar escolhas difíceis.