“A história é contada pelos vencedores”, disse o escritor George Orwell, num artigo publicado em 1944 na revista britânica Tribune, da qual era colunista. Embora contestada por muitos historiadores, a frase de Orwell ajuda a entender, em boa medida, o papel reservado ao político, jornalista e escritor Carlos Lacerda, na narrativa histórica predominante no País.
Anticomunista inflamado e opositor implacável do populismo autoritário de Getúlio Vargas, bem como de seus herdeiros e aliados, que dominavam o jogo político entre 1945 e 1964, Lacerda costuma ser mostrado como o vilão da história.
Chamado de “corvo”, “reacionário” e “fascista” por seus inimigos políticos, que colecionou em profusão, e considerado por grande parte dos historiadores como pivô da crise que acabaria levando Getúlio ao suicídio, em 1954, ele ainda carrega o estigma de “golpista”, por ter apoiado o movimento de 1964, do qual logo se afastou e que acabou por bani-lo da vida pública.
Líder aguerrido da extinta UDN (União Democrática Nacional), que estava à frente da oposição ao varguismo, e jornalista ferino, autor de artigos corrosivos contra seus adversários na Tribuna da Imprensa, que ele criou em 1949, Lacerda é visto até hoje pelas esquerdas como um personagem maldito.
Para autor, Lacerda é ‘injustiçado’ pela narrativa
dominante no acadêmico
Mesmo depois de sua morte precoce, em 1977, aos 63 anos, ainda antes da anistia, seu legado foi praticamente ignorado não apenas pelas mais altas patentes do regime militar como também pelas forças que prevaleceram na Nova República. Enquanto Getúlio, Juscelino e Jango são reverenciados por suas obras, em maior ou menor grau, conforme a tribo, Lacerda é pouco lembrado até nos círculos mais identificados com a sua pregação incansável em defesa das liberdades individuais, da livre iniciativa, da democracia e da lisura na gestão pública.
Agora, um novo livro, intitulado Lacerda, a Virtude da Polêmica, que foi lançado nesta semana, pretende mostrar o outro lado da história. Escrito pelo jovem jornalista Lucas Berlanza, de 27 anos, presidente do Instituto Liberal e também autor do Guia Bibliográfico da Nova Direita (Ed. Resistência Cultural, 256 págs.), publicado em 2017, o livro se propõe a ser uma introdução ao pensamento político de Lacerda, considerado por ele “injustiçado” pela narrativa dominante no meio político e acadêmico.
Berlanza diz que não teve a pretensão de produzir uma biografia completa de Lacerda nem de aprofundar a sua experiência no Executivo, como governador do antigo Estado da Guanabara (1960-1965). Mas oferece um resumo de sua vida e de suas realizações no governo, num dos períodos mais polarizados da vida política do País, marcado por ameaças de guerra civil, golpes e conflagrações vindas de todos os lados.
Obra promove a ‘desideologização’ de Lacerda
O autor não esconde sua simpatia pelas ideias de Lacerda, nem a intenção de resgatar sua memória e promover o que chama de “desideologização” do personagem. Admirador de Lacerda desde a faculdade, quando teve um artigo sobre ele rejeitado pelos organizadores de um evento a respeito da história da imprensa, Berlanza mantém um site batizado de Sentinela Lacerdista e tornou-se um pesquisador atento e dedicado de sua vida política.
Isso, porém, não faz do livro um panfleto lacerdista. Ao contrário. A empatia entre autor e personagem é, talvez, sua maior virtude, ao permitir uma abordagem sem preconceitos do pensamento de Lacerda, a partir do ponto de vista de seus aliados e seguidores políticos. Salvo num ou noutro escorregão indolor, o autor adota um tom sóbrio e desapaixonado no texto e costura com habilidade as ideias do grande líder udenista, em meio aos acontecimentos que as moldaram, sem deixar de expor suas contradições e seus enganos.
Segundo Berlanza, o pragmatismo de Lacerda levava-o a fugir de generalizações teóricas e a rejeitar os rótulos de “direita”, “liberal” e “conservador”, que hoje são alvo de discórdia permanente entre militantes nas redes sociais. Ele afirmava, de acordo com o autor, que o mundo não se podia dividir entre as ideias de Adam Smith, no século XVIII, e Karl Marx, no século XIX.
A rejeição às esquerdas e ao comunismo
Mesmo com sua rejeição às esquerdas e ao comunismo, defendia um liberalismo com preocupação social, que parecia mais próximo do social-liberalismo do filósofo José Guilherme Merquior (1941-1991) que do liberalismo radical abraçado pelo economista Roberto Campos (1917-2001) nas últimas décadas de vida.
Adepto da austeridade fiscal, para controlar a inflação, que já mostrava suas garras na época, Lacerda criticava duramente a construção de Brasília, transformando Juscelino em seu arqui-inimigo, assim como a construção do Maracanã para a Copa de 1950, que julgava um gasto desproporcional.
Crítico contundente da centralização administrativa e do desenvolvimentismo de Vargas e de Juscelino, ele se dizia contrário ao “economicismo”, que considerava ancorado na mesma base filosófica do materialismo de Marx. Na sua visão, era a economia que deveria estar subordinada à política e não o contrário.
Autor do substitutivo que instituiu a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e entusiasta dos investimentos na área para alavancar o desenvolvimento e o bem-estar da população, Lacerda já esbravejava contra o ensino superior gratuito, em detrimento do ensino básico, e a doutrinação ideológica nas escolas – temas que voltaram aos holofotes nos últimos tempos.
No livro A Casa do Meu Avô, elogiado pelo poeta Carlos Drummond de Andrade e pelo sociólogo Gilberto Freyre, ele enxergou em sua família, em especial em seu pai, a aura de Ícaro, o personagem da mitologia grega que voou tão alto que suas asas foram tostadas pelo sol.
Segundo Berlanza, trata-se de uma analogia que revela de forma emblemática o papel de Lacerda na história. Expoente maior da oposição ao varguismo e às esquerdas, Lacerda se foi há 42 anos sem ter realizado o sonho de se tornar presidente do Brasil – cargo que pretendia disputar nas eleições de 1965, canceladas pelos militares. Também não conseguiu ver seu pensamento ganhar a força necessária para determinar o destino da País. Talvez a redescoberta de suas ideias políticas agora possa ser um passo nesta direção.
Saiba mais sobre Carlos Lacerda
Uma seleção de 11 livros a respeito do ex-líder da UDN
1. Carlos Lacerda: A república das abelhas
Autor: Rodrigo Lacerda
Editora: Companhia das Letras
2. Carlos Lacerda: A vida de um lutador
Autor: John W. Dulles
Editora: Nova Fronteira
3. Carlos Lacerda: Cartas 1933-1977
Organizadores: Eduardo Coelho e Claudio Mello e Souza
Editora: Bem-Te-Vi
4. Carlos Lacerda: 10 anos depois
Autor: Claudio Lacerda
Editora: Nova Fronteira
5. Carlos Lacerda: O sonhador pragmático
Autor: Mauro Magalhães
Editora: Civilização Brasileira
6. Carlos Lacerda: Um raio sobre o Brasil
Autor: João Pinheiro Neto
Editora: Gryphus
7. Lacerda na Guanabara: A reconstrução do Rio de Janeiro nos anos 1960
Autor: Maurício Dominguez Perez
Editora: Odisseia
8. Lacerda X Wainer: O Corvo e o Bessarabiano
Autor: Ana Maria de Abre Laurenza
Editora: Senac
9. Lavradio 98 – Histórias de um jornal de oposição
Autor: Stefan Baciu
Editora: Nova Fronteira
10. Meu tio Carlos Lacerda
Autor: Gabriel Lacerda
Editora: Edições de Janeiro
11. Na Tribuna da Imprensa - Crônicas sobre a Constituinte de 1946
Autor: Sérgio Braga
Editora: Nova Fronteira
José Fucs, O Estado de S.Paulo