sexta-feira, 30 de agosto de 2019

"O dia em que o mundo mudou", por Vilma Gryzinski

“Eu sei como a nação alemã ama o seu Führer. Gostaria de propor um brinde à sua saúde.” Com essas palavras não apenas sinistras como impensáveis na boca de quem as proferiu, Josef Stalin, foi selado o destino da Polônia, da Europa e do resto do mundo. Sessenta milhões de pessoas morreriam a partir dos acontecimentos que se desencadearam. O destino dos quatro presentes, sendo Adolf Hitler apenas simbolicamente, como garantidor do acordo entre a Alemanha nazista e a União Soviética, foi igualmente alucinante. Hitler suicidou-se no bunker de Berlim menos de seis anos depois, em abril de 1945. Seu ministro das Relações Exteriores, Joachim von Ribbentrop, foi enforcado em outubro de 1946, depois de condenado em Nuremberg por crimes de guerra (o altamente ineficiente executor, o sargento John Woods, era um ex-desertor diagnosticado com “inferioridade psicopática”). O colega de pacto, Vyacheslav Molotov, conseguiu sobreviver ao monstro que ganhou a guerra e a vantagem de reivindicar o acerto do pacto que a iniciou. Stalin morreu de causas naturais em 1953.
O Pacto Ribbentrop-Molotov foi assinado em 23 de agosto de 1939 e comemorado com champanhe da Geórgia, a terra natal de Stalin. Em 1º de setembro, a Alemanha nazista invadiu a Polônia. No dia 3 de setembro, França e Grã-Bretanha declararam guerra à Alemanha, por força de acordos diplomáticos e da realidade tornada inescapável: Hitler queria conquistar a Europa e invadir países inocentes como a Polônia, sem nem a sombra de um pretexto teórico a justificar a prática. No dia 17, a União Soviética começou a invasão pelo lado leste.
 FUZILAMENTO – Seis civis poloneses à espera dos tiros: foram 6 milhões de mortos, metade católicos, metade judeus
FUZILAMENTO – Seis civis poloneses à espera dos tiros: foram 6 milhões de mortos, metade católicos, metade judeus (Universal Images Group/Getty Images)
Todos os milhares de livros, testemunhos, depoimentos históricos, fotos e filmes não conseguem resumir o tamanho da tragédia que caiu sobre a Polônia. Um milhão de pessoas foram expulsas de suas casas e sítios para dar lugar a alemães; 1,5 milhão de prisioneiros de guerra acabaram nos campos de trabalhos forçados da Alemanha. Do “lado soviético”, os fuzilamentos de prisioneiros são uma ferida aberta até hoje. Cem mil — talvez muito mais — foram despachados para os campos da Sibéria. Dividido entre os vizinhos brutais que depois se enfrentariam, o país chegou ao fim da guerra com 18% de sua população exterminada — seria como se quase 40 milhões de brasileiros morressem num conflito, de tiro, bomba, fome, frio e extermínio. O território polonês sob o controle da Alemanha foi transformado pelos nazistas, a partir de 1941, no campo de genocídio sistemático dos judeus. Hitler dizia que, a longo prazo, pretendia “substituir” 95% da população polonesa. A curto prazo, conseguiu eliminar 90% dos judeus poloneses, a maior proporção em todos os países europeus (na própria Alemanha, onde houve um prazo mais gradual para que os judeus alemães se dessem conta do que estava por vir, foram 30%).
E quem seriam os 5% de poloneses que Hitler salvaria? Hediondamente, ele deixou claro. Crianças loiras de traços germânicos foram sequestradas de maneira sistemática na Polônia durante a ocupação. Mandadas para instituições na Alemanha, eram criadas como soldados do III Reich e adotadas por famílias alemãs — se a “pureza” fosse confirmada. Os casos foram calculados em 60 000. Podem ter sido mais crianças, tragadas no gigantesco sumidouro humano da guerra.
 MÁS NOTÍCIAS – As manchetes da invasão nos jornais ingleses: o fim da guerra não representaria o fim do inferno
MÁS NOTÍCIAS – As manchetes da invasão nos jornais ingleses: o fim da guerra não representaria o fim do inferno (Popperfoto/Getty Images)
Como a mente humana tende a arredondar números, o mais comumente mencionado é que a Polônia, no total, teve 6 milhões de mortos, igualmente divididos: metade católicos, metade judeus. O fim da guerra, obviamente, não foi o fim do inferno. A traição aos aliados transformados em satélites soviéticos, como uma espécie de compensação pela vitória da URSS sobre o nazismo, foi admitida por Winston Churchill com palavras de amarga impotência: “O que queriam que fizéssemos, começar outra guerra?”.
Em agosto de 1939, a Alemanha tinha ampla superioridade em material bélico, tecnologia, comunicações, treinamento e doutrina militar. A Luftwaffe acumulava 4 093 caças, bombardeiros e outras aeronaves de guerra para desferir a campanha. A Polônia, 397. Pesava fortemente o vasto sentimento de revanchismo para motivar do mais simples soldado ao mais alto oficial “Mesmo sabendo tudo o que sei, se Hitler aparecesse nesta cela agora e dissesse ‘Faça isso’, eu faria”, disse o aristocrático Ribbentrop antes de ser executado. A blitzkrieg, a guerra-relâmpago, foi preparada sobre uma base sólida de ideologia incendiária e planejamento militar brilhante. A autodestruição a que ambos os fatores levariam ainda estava longe. “Nossa força está na nossa velocidade e na nossa mobilidade”, discursou Hitler em agosto de 1939. “Gêngis Khan caçou até a morte milhões de mulheres e crianças, conscientemente e com alegria no coração. Preparei minhas unidades da Cabeça de Morte (as infames SS) com ordens para despachar homem, mulher e criança de ascendência ou língua polonesa para a morte, sem piedade nem compaixão. A Polônia será despovoada e ocupada por alemães.”
Patriotismo, bravura e uma crença quase mágica de que só precisaria resistir até o momento em que a França e o Reino Unido viriam em seu auxílio eram os trunfos da Polônia. E os cavalos, claro. Por mais que bons historiadores tentem explicar a razão das imagens inacreditáveis de soldados a cavalo atacando tanques alemães de espada em punho — correr entre blindados inimigos era uma tática desesperada de sobrevivência em situações de cerco e derrocada total —, persiste o mito dos poloneses heroicos e um pouco malucos.
A resistência já havia praticamente acabado no dia 17 de setembro, quando a outra força devastadora começou a avançar sobre a Polônia pelos quase 1 400 quilômetros das fronteiras do lado leste. Eram 446 000 “russos”, as tropas soviéticas mandadas por Stalin para cobrar a conta da sua parte do acordo com a Alemanha nazista. Não tinham nem de longe o treinamento e a coordenação dos alemães. Os expurgos stalinistas, voltados contra os fiéis comunistas — quanto mais fiéis, mais suspeitos —, haviam corroído o Exército Vermelho. Mas o que poderiam fazer contra eles os 100 000 reservistas poloneses enviados para a parte oriental enquanto o resto do país já estava desmoronado diante da ofensiva alemã? Como a invasão tinha sido desfechada sem uma declaração de guerra, soldados em patrulha na fronteira chegaram a achar que os soviéticos “eram amigos, tinham vindo para ajudar”, segundo relatos da época. Não foi difícil perceber o engano. Cercados, com pouca munição e nenhuma comunicação, quando tentavam se render, eram atacados. Os que se entregavam, fuzilados. A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas não ia se desviar de seus objetivos por causa de nenhuma lei de guerra.
No dia 6 de outubro, contrariando a letra sombria de seu hino nacional — “A Polônia ainda não está perdida” —, o país deixou de existir. Hitler, que tinha ido assistir pessoalmente, com binóculos, ao bombardeio final de Varsóvia, viveu seu primeiro momento de grande triunfo. Hoje sabemos que também era o começo do fim, mas oitenta anos atrás o fim do começo da guerra ainda estava muito longe.

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