Aos 81 anos, Madeleine Albright segue dando aulas de diplomacia na Universidade Georgetown, em Washington. Em paralelo, mantém uma consultoria de estratégia empresarial, a Albright Stonebridge Group, com clientes em mais de 110 países. Entre 1997 e 2001, ela exerceu a função de secretária de Estado no governo de Bill Clinton e ganhou a alcunha de Madam Secretary. Foi a primeira mulher a ocupar o cargo. Seu novo livro, Fascismo, um Alerta (Crítica), acaba de ser lançado no Brasil. Por telefone, Madeleine conversou com VEJA.
Por que escrever um livro sobre fascismo? Nasci na Checoslováquia, a atual República Checa, e tive de deixar meu país duas vezes. Na primeira, em 1939, foi por causa do fascismo. Na segunda, em 1948, fugi do comunismo. Devido a essas experiências, sempre tive interesse em saber como as instituições nacionais reagiram diante dessas ameaças e quais eram as causas desses fenômenos. Além disso, fico incomodada olhando a situação atual em vários países.
O que a incomoda? As divisões sociais entre ricos e pobres têm aumentado e a tecnologia tem feito com que muitos percam o emprego. Vários líderes têm tentado emendar essas fissuras sociais, mas acabaram fazendo com que elas se aprofundassem ainda mais. Não buscaram encontrar um denominador comum, unir as pessoas. O que procurei fazer foi recuperar a história e detectar as tendências, para evitar que as sociedades repitam os erros do passado. Senti que era preciso fazer um alerta. Alguns criticam meu livro dizendo que é uma obra alarmista. Mas era exatamente essa a intenção.
Como a senhora define o fascismo? É um método para ganhar e para manter o poder. Não é uma ideologia. No fascismo, um governante se identifica como o representante de uma etnia, de uma nacionalidade ou de uma tribo. Então, em detrimento de outro grupo, cria uma regra para a maioria e não dá nenhum direito às minorias. Em vez de encontrar pontos em comum entre os diferentes grupos, o fascista aprofunda as divisões. Além disso, ele usa a violência para subir ao poder e aferrar-se a ele.
Em seu livro, o ditador coreano Kim Jong-un é considerado “um verdadeiro fascista”. Como ele tem se aproximado da Coreia do Sul e dos Estados Unidos, a senhora diria que ele está deixando de ser fascista? Os fascistas geralmente acabam sendo enforcados ou cometendo suicídio. Mas acredito que estamos vivendo uma era diferente e que vale a pena tentar a diplomacia e as sanções econômicas. Temos de fazer todo o possível para que não haja um confronto nuclear entre a Coreia do Norte e qualquer outro país. Além do mais, a diplomacia serve para que a gente possa falar com monstros. Kim tem utilizado uma violência inacreditável contra seu povo. Mantém pessoas em campos de concentração e acha que seus cidadãos só lhe devem obediência. Ele tem prometido parar com isso ou aquilo. Falou em fechar instalações do programa nuclear. Não acho que alguém confie nele, mas é preciso manter um canal de comunicação. É esse o trabalho de quem faz relações exteriores. Um diplomata deve conversar mais com quem discorda dele do que com quem concorda com ele.
Como a senhora define o presidente Donald Trump? Ele não é um fascista, e o principal motivo é que não tem usado a violência contra seu povo. Ele também não tem dado passos indicando que pretende controlar tudo. Mas estou preocupada. A principal citação do meu livro é do italiano Benito Mussolini. Para concentrar o poder, Il Duce dizia que cai bem, ao depenar um frango, tirar uma pena de cada vez, de forma que cada guincho seja ouvido à parte dos outros e todo o processo ocorra da maneira mais discreta possível. Trump também tem tirado penas da galinha, mas ainda restam muitas nas suas asas.
Por que a senhora chama Trump de “o presidente mais antidemocrático na história moderna dos EUA”? Somos a democracia mais antiga do mundo e dependemos do respeito à Constituição e às instituições. Mas Trump não as respeita. Uma das instituições que mais ataca é a Justiça. Ele faz muitas piadas sobre os juízes. Não é respeitoso. É também nocivo para a imprensa, que é uma das bases da democracia. Ele diz que os jornalistas são “inimigos do povo”. Considera-se acima da lei. Ultimamente, tem dito que o secretário de Justiça (refere-se a Jeff Sessions) não está fazendo nada. Mas essa é a autoridade responsável por fazer que a Constituição seja seguida. Richard Nixon (1913-1994) também cometeu vários crimes, mas Trump é muito mais desrespeitoso que Nixon em relação às nossas instituições.
Democracias jovens são mais suscetíveis a novas formas de fascismo? A democracia é baseada no que chamamos de “contrato social”, em que as pessoas abrem mão de uma parte de sua liberdade individual em troca da proteção do Estado. Ambas as partes têm de cumprir suas responsabilidades. O Estado recolhe impostos para construir estradas, oferecer educação e saúde. Os cidadãos têm a responsabilidade de estudar o que o governo está fazendo, de informar-se sobre como uma democracia funciona e de votar. O problema é que tudo demora um pouco para se consolidar. Uma democracia mais nova sempre está mais sujeita ao aparecimento de um demagogo com soluções fáceis. É por isso que as democracias precisam ajudar-se umas às outras. Nós poderíamos criar uma comunidade das democracias para compartilhar experiências e tentar oferecer de modo mais eficiente aquilo de que a população precisa.
Qual é sua opinião sobre o slogan “América em primeiro lugar”, de Trump? É terrível. Essa frase lembra os anos 1930, quando os Estados Unidos eram um país isolado e não se importavam com o que acontecia na Europa. É óbvio que todo líder, em qualquer lugar, é eleito para se preocupar com os interesses de seu país. A questão, no entanto, é outra: não seria de maior ajuda aos interesses nacionais haver uma cooperação com outras nações? O presidente Clinton e eu costumávamos dizer que os Estados Unidos são uma nação indispensável. Para nós dois, nosso país está melhor quando tem bons parceiros. O slogan “América em primeiro lugar” é uma afirmação totalmente antiamericana. E tem induzido à busca por bodes expiatórios, à busca por grupos nos quais pôr a culpa dos problemas gerais. Era o que fazia Mussolini, era o que fazia Hitler, que escolheu os judeus como alvo. Hoje, esse papel foi destinado aos imigrantes e estrangeiros. Considero cruéis as políticas migratórias do governo americano.
Trump é um estímulo para líderes autoritários no resto do mundo? Os Estados Unidos, até onde eu sei, foram um modelo em termos de como as instituições democráticas funcionam, de como o governo respeita o desejo do povo, de imprensa livre, de tudo isso. Mas Trump não atua de acordo com nossos valores morais. Quando ele ataca os jornalistas, por exemplo, tranquiliza líderes autoritários que também fazem isso. Se o presidente do país mais poderoso do mundo age assim, não haveria motivo para eles deixarem de realizar algo semelhante.
A senhora escreveu em seu livro que, “dentro de cada um de nós, há um desejo inexorável de liberdade”. O anseio por uma ditadura nunca supera o amor pela democracia? Em tempos de crise, as pessoas tendem a prestigiar quem promete resolver tudo de um jeito simples e rápido. Fascistas como Mussolini e Hitler tiveram apoio amplo na sociedade e chegaram ao poder por vias constitucionais. Eles se aproveitaram de momentos de depressão econômica e insatisfação com o governo. Mas também tenho a crença de que, com o tempo, sob um regime ditatorial, essas mesmas pessoas ficam insatisfeitas quando percebem que o governo não as deixa fazer o que elas desejam. Em geral, os cidadãos querem poder tomar decisões sobre a própria vida. Mas a parte difícil é que, infelizmente, eles precisam viver a experiência de um governo autoritário para valorizar a liberdade de novo. Querem escolher onde vão morar, que língua ensinarão aos filhos e em qual escola eles estudarão. Para isso acontecer, é preciso poder tomar decisões sobre como a cidade e o estado são governados. O capítulo realmente triste, que acontece no Brasil, é que neste momento não há confiança nas instituições. Os brasileiros, assim como os americanos, estão desapontados. É nesse contexto que muitos pensam em optar por uma solução diferente, um atalho. Depois que perdem a liberdade e a independência, eles passam a almejar esses princípios novamente.
A senhora está acompanhando as eleições brasileiras? Sei que há uma decepção com as instituições. Houve muita corrupção. A economia não vai bem. Para os brasileiros, esta é a hora de fazer as perguntas certas e entender o que aconteceu com outros países que enfrentaram problemas similares. Pela história, sabemos que os líderes que mais tarde se revelaram autoritários foram os que prometeram resolver os problemas de um jeito simples com sua sabedoria invejável. Mussolini chamava a si mesmo de gênio. Ele achava que tinha todas as respostas. Outra necessidade é verificar se os candidatos apelam para que as pessoas sejam preconceituosas e desrespeitem indivíduos de outros grupos, etnias, raças, credos ou partidos. Há uma série de perguntas a ser feitas.
Que perguntas? Os candidatos querem canalizar nossa raiva para cidadãos que, segundo eles, nos fizeram algum mal? Eles nos encorajam a ter desprezo por uma instituição governamental, pela imprensa livre ou pelos tribunais? Quando falam de maneira mais descontraída — e constantemente machista — sobre usar a violência como solução para eliminar os inimigos, essas ideias são aplaudidas? Eles ecoam aquilo que dizia Mussolini, para quem a multidão não precisava entender das coisas, apenas acreditar e se submeter?
Devemos nos preocupar mais com a extrema direita ou com a extrema esquerda? De certo modo, o comunismo da antiga União Soviética e o da China atual também são fascistas. Mas os extremos de ambos os espectros ideológicos têm exatamente o mesmo efeito, porque ditam como as pessoas devem se comportar. A China é controlada por um único líder, Xi Jinping, e pelo Partido Comunista. Mas, como não vejo diferenças no desejo de moradores de vários países, acho que todos querem um sistema que responda às próprias necessidades, e não às de um partido ou de um ditador.