domingo, 1 de julho de 2018

Oferta de cartão cresce, e 30% dos que não pagam o mínimo recebem Bolsa Família


Débito. Cícera Alves recebe o Bolsa Família e complementa a renda vendendo água na capital federal. Caiu no rotativo e, para não ficar com nome sujo, negociou parcelar a dívida de R$ 600 - Agência O Globo / Ailton de Freitas


A expansão do uso do cartão de crédito junto à população de baixa renda começa a mostrar seu lado negativo. Estudo recente do Banco Central (BC) mostra que, de um universo de 2,6 milhões de pessoas que não conseguem pagar sequer o valor mínimo da fatura, classificado como rotativo não regular, 29,6% (769,6 mil) recebem o Bolsa Família, benefício pago a quem tem renda familiar mensal menor do que R$ 170 per capita.

Para analistas, a estratégia de popularização do cartão de crédito foi puxada por bancos, mas, principalmente, por financeiras e grandes varejistas, que estão fora do guarda-chuva de supervisão do Banco Central. A autoridade monetária regula apenas as instituições financeiras. Os efeitos desta política de expansão dos cartões de crédito sobre os usuários não são fiscalizados pelo BC.

Segundo as estatísticas do BC, quase metade dos que estão pendurados no rotativo não regular não tem emprego formal. Além do grupo que recebe o Bolsa Família, há uma fatia de 20,5% formada por pessoas que foram demitidas entre 2016 e 2017 e que não recebem benefícios. Outros 3,9% que também têm esse modelo de dívida recebem o seguro-desemprego.

A pobreza, no entanto, não impede que elas sejam oneradas com juros de 346,1% ao ano, em dados de maio. Com uma taxa como essa, a dívida torna-se impagável e acaba com um dos bens mais valiosos para a população de baixa renda: o nome limpo.


Sem saída. O vendedor Roberto Dias, de Brasília, não conseguiu pagar a dívida de seu cartão de crédito e ficou com o nome sujo - Agência O Globo / Ailton de Freitas

Foi esse patrimônio que Roberto Dias perdeu. Os R$ 40 que ganha por dia com as vendas de carimbos para unhas no camelódromo da rodoviária de Brasília e o benefício que sua mulher recebe do governo não foram suficientes para garantir o histórico de bom pagador. 

Esperou a dívida do cartão caducar para ter crédito. Uma situação que pode não durar muito tempo, porque ele não está conseguindo pagar outra dívida: está inadimplente num empréstimo feito junto a um banco.

— O jeito é esperar limpar o nome — lamenta o camelô, que estudou somente até a 5ª série.

Roberto é um exemplo das estatísticas do Banco Central, que analisou dívidas de pelo menos R$ 200. Pelo levantamento, 77,9% das pessoas que estão no rotativo não regular têm apenas até o ensino médio. Como ele, há outras pessoas de baixa renda que, vencidas pelos juros altos, acabam caindo na inadimplência.

BOLA DE NEVE

Foi assim que Cícera Alves, de 47 anos, viu as contas se descontrolarem. Depois de 19 anos de trabalho como servente com carteira assinada, ela foi demitida. Recebe o Bolsa Família, mas precisa complementar a renda. Vende garrafas de água no Centro da capital federal. O cartão de crédito servia apenas para as compras da casa, mas o dinheiro não era suficiente para pagar a fatura. Caiu no rotativo. Antes de perder o nome limpo por causa de uma dívida de R$ 600, procurou o banco. Parcelou o débito e passou a bancar uma prestação de R$ 50 mensais. Ela também estudou apenas até a 5ª série e não consegue mais achar emprego.

— Estou pagando aos poucos. Como o Bolsa Família é muito pouco, vendo água aqui — conta Cícera.

Ao todo, o juro do rotativo do cartão assombra 18,2 milhões de brasileiros — 15,6 milhões que conseguem pagar o mínimo da fatura, e 2,6 milhões que não quitam esse valor.
O índice de inadimplência no crédito rotativo é de 33,7%: o pior entre os empréstimos para pessoa física. Já o nível geral do calote no crédito à pessoa física é de 3,6%. Para Miguel Oliveira, vice-presidente da Associação Nacional dos Executivos de Finanças (Anefac), a alta percentagem de falta de pagamento é um efeito ruim da popularização do crédito no Brasil.

‘POLÍTICA OTIMISTA DEMAIS’

Ele lembra que, há poucos anos, cartão de crédito era considerado um meio de pagamento elitizado. Hoje, todo mundo tem acesso. Oliveira diz que as instituições atuaram para aumentar a base de clientes para ter uma carteira maior e ganhar com tarifas. Ele lembra que os bancos não podem discriminar, mas devem ser prudentes na hora de estabelecer limites para clientes sem capacidade de pagamento:

— Essa dívida não vai ser paga, porque virou uma bola de neve, e a pessoa não consegue pagar. O nome limpo é a única coisa que o cara tem para ter acesso ao consumo.

Luís Miguel Santacreu, analista da Austin Rating, especializado em mercado financeiro, lembra que não são apenas os bancos que fornecem o cartão de crédito para pessoas de baixa renda. Há financeiras e grandes lojas varejistas que são mais liberais na emissão do instrumento.

— Falar que só os bancos foram imprudentes é dar um tiro cego. Independentemente se foi banco ou lojista, é uma politica de crédito um pouco otimista demais. Economicamente, não é bom. O desemprego está altíssimo há dois anos — argumenta o analista da Austin Rating.

No estudo feito pelo BC, os técnicos cruzaram os dados da autarquia com informações sobre o mercado de trabalho e concluíram que 41,8% dos 50 milhões de brasileiros que têm cartão (20,9 milhões) estavam formalmente empregados; 1,6% (786 mil) recebia seguro-desemprego; 16,1% (8,1 milhões) eram beneficiários de algum programa social (em sua maioria, do Bolsa Família); 8,9% (4,4 milhões) foram demitidos entre 2016 e 2017 e não recebiam nenhum benefício.

EDUCAÇÃO FINANCEIRA PARA BAIXA RENDA

O BC é responsável pela supervisão do crédito por meio de cartões. De acordo com a autoridade monetária, não há, no entanto, regulamentação específica do Conselho Monetário Nacional (CMN) ou do próprio BC que trate especificamente da concessão de crédito para a população de baixa renda. A autarquia afirma apenas que as instituições devem estabelecer limites de crédito compatíveis com o perfil dos clientes e assegurar a adequação dos produtos e serviços ofertados às necessidades, interesses e objetivos dos correntistas.

Procurada, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) disse que o assunto teria de ser tratado com a Associação Brasileira de Empresas de Cartões de Crédito (Abecs). A Abecs, por sua vez, alegou que não tem informação sobre a política de concessão de crédito das empresas associadas. E frisou que cada emissor possui sua própria política e estratégia comercial.

— Foi com o dinheiro daqui que me livrei da dívida — conta a ambulante, enquanto faz mais uma venda.

Para Miguel Russo, especialista em finanças pessoais e sócio da Centuria Investimentos, é preciso investir na educação financeira da população de baixa renda para que ela aprenda a arrumar dívidas mais baratas.

— Quando as pessoas vão para o rotativo do cartão de crédito, elas terão problema. Por isso, é uma das dívidas com a taxa de inadimplência mais alta. Os bancos sabem disso e cobram caro — diz Russo.



Gabriela Valente, O Globo