Por coincidência, ao mesmo tempo em que se iniciava o debate acerca da eleição de 2018, eu estava lendo o terceiro livro de memórias de Fernando Henrique Cardoso (FHC) acerca do seu período presidencial sobre os anos 1999/2000. Foi interessante avaliar o debate atual à luz das reflexões de FHC sobre o período em que conduziu o país. Um resumo das dificuldades é fornecido logo na apresentação, na qual ele diz: “Em nossa cultura política, e com o desenho político partidário em vigor, o presidente ou o governo só obtém maioria congressual com alianças. Precisa, portanto, entrar no corpo a corpo com os parlamentares para obter resultados legislativos, com toda a carga tradicional de redes de clientelismo e troca de favores. Com isso, ganha senão o repúdio, o distanciamento da sociedade. Para aprovar medidas legislativas, mesmo as requeridas pela maioria da sociedade, ou o governo tem o apoio de partidos e líderes, ou fica isolado e perde”.
Ao mesmo tempo, a chave — de notável atualidade — para entender os problemas está numa frase síntese emblemática das características nacionais, quando FHC explica a Arminio Fraga em 1999 como ele tinha que se conduzir na sabatina do Senado, antes de assumir a presidência do Banco Central: “O Brasil não gosta do sistema capitalista. Os congressistas não gostam do capitalismo, os jornalistas não gostam do capitalismo, os universitários não gostam do capitalismo. Eles não sabem que não gostam do sistema capitalista, mas não gostam. Eles gostam do Estado, eles gostam de intervenção.” (página 107)
Retomando as reflexões acerca das dificuldades de conciliar a agenda da modernização com a convivência com o “Brasil profundo”, FHC explica a vida como ela é: “(o partido) está amuado. Eles pretendem forçar a nomeação de pessoas... Estamos na difícil faina de defendermos o cofre e, ao mesmo tempo, obtermos os votos no Congresso. Nossa realidade política é assim... Temos que fazer uma tourada o tempo todo para evitar que isso vire um escândalo ou que eles usem esses recursos malversando-os. Ao mesmo tempo, não podemos romper, porque ... não há votos no Congresso.” (página 111)
E, em conversa com um amigo, reportada nas memórias, ele esclarece como funciona o mundo real: “Sem essa base eu não governo, e ela é assim mesmo. Não tenhamos ilusão de que no futuro, com a reforma dos partidos, haverá melhoras grandes. Mesmo que reformemos nossos partidos, a nossa cultura política é atrasada. Há interesses pessoais sobrepondo-se a tudo o mais, e os partidos vão continuar sendo aglomerados como são os que aí estão.” (página 113)
Tempos depois, numa das tantas crises que todo governo algumas vezes tem que enfrentar, ele analisa: “Isso tudo é consequência da percepção de impopularidade do governo; por causa da crise econômica, os parlamentares começam a botar as manguinhas de fora querendo afinar com a sociedade, mas esquecendo que a sociedade precisa das leis de transformação que estamos colocando em votação. Sobretudo a lei da Previdência.
Toda vez que se fala em aumentar o tempo de trabalho para chegar à Previdência, as pessoas reagem fortemente.” (página 273; em 1999!!) E, algumas páginas depois, a propósito da demanda de um correligionário, ele explica o tipo de barganha própria do varejo parlamentar: “Tem um problema, que é o pai dele, uma pessoa que sempre apoiou o governo, tem 74 anos, precisa de uma posição num conselho qualquer para ter estímulo pessoal na vida, para ter algum interesse na vida.” (página 296)
A conclusão é amarga: “É sempre a mesma história, dificílimo governar um país com pluripartidarismo e quando se precisa de apoios para manter o governo; por outro lado, as brigas são encarniçadas em nível local — é realmente um sistema político dificílimo de manter à tona ... Essa choradeira é permanente, basta ler o livro do Getúlio, ela havia até no período do Império, é a mesma coisa: as regiões querem que o governo federal pague tudo para elas. É um federalismo de fachada.” (página 345)
O Brasil de 2002 era muito melhor que o de 1994, respeitando a democracia, entre outras coisas porque FHC era um estadista. Não nos iludamos: o Brasil não mudará em 24 horas dia 1º de janeiro. Quem vencer em outubro terá muito a aprender lendo essas reflexões.