terça-feira, 31 de julho de 2018

"Política sem pudor", por José Nêumanne


Em 2002, Dirceu e Valdemar já se entendiam ao pé do ouvido na formação
da chapa Lula e Alencar. Foto: Dida Sampaio/Estadão
Em fevereiro de 1994, o então presidente Itamar Franco foi fotografado por todos os repórteres fotográficos profissionais e amadores, paparazzi e que tais que cobriam o carnaval no Sambódromo da Marquês de Sapucaí, na capital mundial do samba, São Sebastião (vade retro) do Rio de Janeiro. Sua mão direita foi flagrada enlaçada com a esquerda da modelo Lilian Ramos e com a esquerda andava beijinhos. O inusitado é que as fotografias daquela ingênua alegria momesca só puderam ser publicadas com a tarja preta da censura. Pois a moça não dispunha de traje íntimo, por mais sumário que fosse, para esconder as partes pudendas. Providenciado pelo prestimoso deputado paulista Valdemar Costa Neto, então desconhecido, o vexame da bela ao lado sem tapa-sexo, habitualmente usado por figurantes nuas de escolas de samba que ali desfilavam, foi atenuado pelo fato de, à época, Itamar ser solteiro.
Itamar Franco nascera em alto-mar, navegando no Atlântico da Bahia para Minas e foi ali que fincou resistência e raízes políticas em Juiz de Fora, cidade onde, por acaso – e a deusa Clio, da História e do tempo (cronos), é pródiga nessas gracinhas –, nasceu Valdemar Costa Filho, pai do pareceiro presidencial. O Filho, que era pai, foi três vezes prefeito de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo, onde se tornou chefe de clã, e secretário de Abastecimento numa gestão municipal de Paulo Maluf em São Paulo. Sem ter de purgar pecados pelo episódio do vexame fotografado, pois Itamar entregara a Presidência ao ex-ministro Fernando Henrique e ainda governaria Minas Gerais, derrotando o tucano Eduardo Azeredo, embora este tenha apelado no pleito aos serviços do mesmo Marcos Valério que urdiu o “mensalão”, Costa Neto pôde continuar sua carreira de alcoviteiro em nível mais elevado e lucrativo após trocar a passarela pelo palanque.
Pois em fevereiro de 2002, com a nudez revelada da amiga do insigne parlamentar completando a maioridade de 18 aninhos, o ás da imagem fixa no noticiário de O Estado de S. Paulo, Dida Sampaio, flagrou um cochicho amigável, e então absolutamente insuspeito, entre um ainda inimigo público de dr. Paulo e o filho de seu lugar-tenente em Mogi, dr. Valdemar Costa Filho. Dida tornou então, público sem querer, com o talento profético dos poetas da imagem, um teretetê de pé de orelha entre o então presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), José Dirceu, e o referido dito-cujo Valdemar Costa Neto, sempre tido e havido como Boy, seja pelo aspecto juvenil, seja pela presteza de entregador de pacotes.
Ali foi clicado o instante prévio do encontro a portas fechadas, portanto, distante da curiosidade do repórter fotográfico, em que a dupla do malufista de Mogi e o organizador do congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) que terminou nas celas de Fleury e Tuma firmou um pacto diabólico. No panorama descortinado da ponte daquele ano de 2002 se destacava o casório político em que Lula, o enfant terrible do PT, encomendava o terno de sua futura posse como presidente da República aos alfaiates de plantão na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), em plena Avenida Paulista, canteiro da mais fina-flor da burguesia nacional. Ao encontro o Boy não levava uma bela dama negligenciando parte relevante do vestuário mais pessoal. Mas, sim, a noiva que tornaria o tosco ferramenteiro candidato imbatível a ornar o próprio tórax com a faixa auriverde do poder republicano. Afastado do malufismo paterno, Neto era da bancada do Partido Liberal (PL), hoje da República (PR), sendo que nunca foi liberal nem será republicano. Com tal aliança o sindicalista feroz ganharia a confiança e as graças da cornucópia eleitoral que se autodenomina mercado. Dirceu e Valdemar foram indicados para escolher a almofada na qual se depositariam os aros dourados a serem levados à dupla a ser lançada: Lula e José Alencar, com quem nos reencontraremos no final deste texto, preclaro leitor.
Antes disso, retomemos o fio da meada. O cochicho fotografado e publicado, aparentemente um flagrante pitoresco das pouco confiáveis coligações que apoiam pretendentes ao poder da República, simbolizava outro tipo de conúbio: a mobilidade entre esquerda, direita e centro no aparelhamento descarado das agências reguladoras, que o tucano sociólogo havia inventado sem ajuda daqueles novos sócios – os sindicalistas do ABC com os empresários bem-sucedidos e evangélicos habituados à multiplicação de óbolos e sufrágios. Lula, após a Carta aos Brasileiros, por obra e mercê de Antônio Palocci, encontrava em Alencar o aval pessoal do dito PIB, para sossegar os outros sócios. E também o representante da palavra do dízimo. É claro que isso provocaria, e provocou, a ira sagrada dos bispos católicos que tinham abrigado os metalúrgicos na matriz de São Bernardo no momento de paixão, fé e amargura da greve na ditadura. Mas o operário braçal despia ali o macacão sujo de graxa do irado João Ferrador, ícone do grevista bravo no jornal dos metalúrgicos. E nada havia do lado de fora que os bispos da Santa Madre tivessem a abençoar.
O tucano da cátedra havia criado agências reguladoras para evitarem que o poder econômico de grandes empresas concessionárias, anabolizado com os serviços a serem prestados pela hierarquia partidária, comprada a peso de propina, esmagasse a economia popular, esfolando o cidadão, eleitor e contribuinte. Era programa a ser acompanhado por Lula e Fernando Henrique, mas à época em que o líder operário emergente apoiava o assessor sociológico do dr. Ulysses Guimarães para o Senado, ao qual chegaria pela via da suplência. E dali para o poder e a glória.
Na vida real, o cochicho de 2002 apitou o começo do jogo do PT com os novos pareceiros com os quais comporia o chamado “mensalão”. O resultado chegou aos nossos dias e ultrapassou os portais do “golpismo” de Temer: dos 40 diretores das oito agências principais, 35 são apadrinhados por partidos, segundo reportou O Globo em editorial na semana passada. Nestes 16 anos, onde estava o Banco Central, que não coibiu nem puniu  a lavagem de dinheiro investigada na Lava Jato?
Só para ilustrar, um grãozinho de areia nesse deserto de corrupção: as empresas de Alberto Youssef mantiveram contas em bancos por períodos superiores a três anos. Onde estava a fiscalização do Banco Central? Corretoras de valores e bancos não estão também sujeitos às normativas relacionadas à lavagem de dinheiro. Recentemente, este Estadonoticiou que a Receita Federal encontrou indícios que apontam para a responsabilidade de instituições financeiras em crimes investigados na Lava Jato. Para o fisco, os bancos não foram “diligentes” na adoção de políticas, procedimentos e controles internos.  Não foram mesmo!
E o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), que é subordinado ao Ministério da Fazenda? Bilhões de reais em cédulas circularam por aí em malas, cuecas, meias, etc. Qual a origem desse dinheiro? Como pode o Coaf não ter desconfiado de nada?
E a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que deixou passar uma manada de elefantes e nada viu ou fez? Petrobrás, Eletrobrás, JBS,  Braskem, por exemplo, são empresas abertas sob a fiscalização da CVM. E onde estava a Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc), vinculada ao Ministério da Fazenda para fiscalizar os fundos de pensão, que não fiscalizou os fundos de pensão estatais que  causaram prejuízos de R$ 8 bilhões a seus associados? Em fevereiro passado, a 34 anos do carnaval de Lilian Ramos e 16 do cochicho fotografado, este jornal informou que o Ministério Público investiga se a CVM e a Previc falharam ao não conseguirem impedir o rombo de R$ 5,6 bilhões no fundo de pensão dos Correios, o Postalis. Segundo o procurador federal Ivan Cláudio Marx, a Previc e a CVM foram envolvidas no esquema e possibilitaram  que o crime prosperasse.
Calma. Não termina aí. Tem mais. Em 2010, o então presidente Lula pediu ao Tribunal de Contas da União (TCU), pelos jornais, vista grossa em obras da Copa. Está claro que houve nessas agências uma contaminação generalizada do aparelhamento do Estado. Mas vamos combinar: essa incompetência foi deliberada!!! Elas foram instigadas a nada fiscalizar!
Valdemar Costa Neto, sempre Boy, apoia Alckmin para presidente. Seu vice favorito é Josué Gomes da Silva, filho de José Alencar, duas vezes vice de Lula. Ou seja: está tudo como dantes no “cartel” de Abrantes…
  • Jornalista, poeta e escritor
O flagrante pra lá de indiscreto do presidente Itamar com a modelo Lilian Ramos na Marquês de Sapucaí e sem Valdemar, em 1994. Foto: Wilson Pedrosa/AE
O Estado de São Paulo