sexta-feira, 29 de julho de 2016

"Está difícil ser muçulmano. Aonde você vai, vira alvo"

Raul Montenegro - IstoE


Líder de milhares de fiéis em 115 mesquitas e salas de orações no Brasil, o xeque Jihad Hassan Hammadeh é um dos muçulmanos mais influentes do País. Clérigo formado pela Universidade de Medina, na Arábia Saudita, é hoje presidente do Conselho de Ética da União Nacional das Entidades Islâmicas. Além dos títulos, conquistou notoriedade fora do meio religioso explicando sua fé depois do atentado de 11 de setembro de 2001, em Nova York, e trabalhando como consultor de cultura muçulmana da novela “O Clone”, exibida pela Rede Globo. Nascido em Damasco, na Síria, nação hoje destroçada por conflitos políticos e religiosos, Hammadeh chegou ao Brasil com oito anos, junto à família de comerciantes. Quando criança, não havia ninguém no País que pudesse esclarecer suas dúvidas sobre o Islã. Por isso, entre 1981 e 1991, estudou a religião no exterior. Voltou para passar aos brasileiros o conhecimento que recebeu. Bem-humorado e didático, o xeque falou à ISTOÉ.

Doze brasileiros foram presos na semana passada por jurar fidelidade ao Estado Islâmico. Como o senhor vê esse feito?
Eu conhecia duas das pessoas que foram presas em São Paulo. Mas uma coisa é você conhecer, outra é saber o que se passa na cabeça delas. Por fora, demonstravam serem pessoas tranquilas. Um deles, inclusive, é um comerciante que passou por dificuldades com a crise econômica, como qualquer outro. Os dois nunca deram sinais de radicalismo. De agora em diante, é preciso apurar os fatos para descobrir a verdade, dando chance para eles se defenderem. Se forem realmente culpados, serão um risco para a segurança de todos, inclusive a dos muçulmanos. Nesse caso, que sejam punidos de acordo com a lei.
O governo reforçou o esquema de segurança no Rio para a Olimpíada. Como a medida reflete na população islâmica?
Tenho relatos de pessoas que nunca haviam sido revistadas durante toda uma vida no Rio. Desde que o esquema de segurança começou, elas foram revistadas duas ou três vezes, apenas por serem muçulmanas. Recentemente a Abin (Agência Brasileira de Inteligência) lançou um cartaz mostrando como reconhecer um terrorista, dizendo que pessoas com roupas estranhas são suspeitas. Qualquer muçulmano pode se encaixar nessa descrição. Houve na comunidade islâmica um alvoroço. O próprio governo brasileiro está criando medo e discriminação. O legado deixado pode ser muito ruim para a sociedade brasileira.
Existe muito preconceito contra o islamismo?
O preconceito está crescendo, existe uma onda. O estereótipo de que o islamismo está ligado ao terrorismo piorou muito desde 2001, com o atentado ao World Trade Center. E tende a aumentar. O muçulmano se sente injustiçado, calado. A discriminação traz esse sentimento. As pessoas à sua volta começam a olhar diferente. Aonde você vai, vira alvo de cochichos, de olhares. É especialmente desagradável quando as pessoas começam a se afastar se você põe a mão no bolso para pegar qualquer coisa, como uma carteira ou um celular.
Como é ser muçulmano hoje no Brasil?
Está muito difícil, já passei por muitas saias justas. O aeroporto é um local onde essas coisas sempre acontecem. Começa com pessoas fazendo piadinhas na fila, falando coisas como ‘nesse avião eu não entro’. Mas pode ficar bem pior do que isso. Houve uma vez, por exemplo, em que eu estava num voo com outro xeque muçulmano. Escutei uma confusão antes da decolagem, mas a princípio nem sabia que era comigo. Só depois descobri o que aconteceu. Outro passageiro pediu que os comissários de bordo nos retirassem do avião. Ele alegou que não se sentia seguro. Os funcionários disseram que não iam nos retirar, mas que o homem poderia sair caso não estivesse à vontade. E ele saiu.
É mais difícil para as mulheres?
Sim, muito mais. Certa vez eu encontrei um grupo de palestinos desembarcando em Brasília. Uma senhora estava de véu e uma das funcionárias do aeroporto mandou retirá-lo. Mas com muita rispidez, muita agressividade. Primeiro a senhora disse que não iria, depois ficou com medo e obedeceu, na frente de todo mundo. Foi coagida. O lugar possui quartinhos para fazer revistas nesses casos. O que aconteceu foi puro preconceito. Uma freira com a cabeça coberta, com certeza, não seria tratada da mesma forma.
O Estado Islâmico representa os ideais muçulmanos?
Não. O verdadeiro islamismo busca a paz e a justiça. O Estado Islâmico não tem embasamento e pratica o contrário disso. Todos os muçulmanos do mundo são contrários a eles, mesmo porque a maioria das vítimas é da própria religião. Estima-se que aproximadamente 25 mil pessoas façam parte dessa organização, mas somos 1,5 bilhão de muçulmanos no mundo. É uma fração ínfima. Eles não têm representatividade para a atenção que estão tendo. Eles querem visibilidade, e é isso que estamos dando.
O Corão, livro sagrado do islamismo, promove a paz. Mas também prega o combate aos infiéis. Há uma contradição?
Não existe contradição. A pessoa se torna infiel quando agride os princípios do islamismo, como o conceito da justiça. Essas passagens querem dizer que é preciso combater o injusto, independentemente do credo deles. E ainda defender o injustiçado, seja ele muçulmano ou não. Por exemplo, tem uma passagem que diz ‘matai os infiéis, onde quer que os encontre’. Existe um contexto. Entre os incrédulos da cidade de Meca e os muçulmanos de Medina havia um acordo de não agressão. E quebrar esse acordo era passível de pena de morte. É isso que significa. Porém a pessoa que lê sem conhecimento pensa que Deus falou para sair matando todo mundo. É uma interpretação errada dos ensinamentos do Corão.
Nesse sentido, existe pouca diferença entre o islamismo e outras religiões?
A mesma coisa acontece na Bíblia, onde existem muitas passagens violentas, especialmente no Velho Testamento. E nem por isso é um livro de violência. No Corão, apenas cento e poucos versículos falam de violência. Temos 6 mil no total.
O Islã também defende a destruição de importantes símbolos de outras religiões?
Se a prática de grupos como a Al Qaeda e o Estado Islâmico seguisse os preceitos religiosos, todo esse legado não teria chegado até nós passando por 14 séculos de governo islâmico. Graças aos muçulmanos, os filósofos gregos chegaram até os dias de hoje. Se não fosse por eles, não estaríamos usando o computador ou o celular, já que foi o povo que inventou o número zero. A destruição é somente um chamariz para chamar atenção. A nossa religião prega que nunca se deve ofender os símbolos religiosos dos outros, porque sempre haverá revide.
Os onze brasileiros presos em várias cidades são suspeitos de planejar ataques com base na interpretação equivocada do Corão, inspirada no Estado Islâmico. Como eles, jovens em Nice (França) e Orlando (EUA) arquitetaram massacres baseados na ideologia da organização, mesmo sem ter contato direto com o grupo. Como impedir que mais pessoas sejam levados ao radicalismo?
Conscientizando as pessoas, nunca através da força. Fanatismo é ignorância e é preciso combatê-lo com conhecimento. Um detalhe é que muitas vezes essas pessoas não têm ligação nenhuma com a religião. Por exemplo, os vizinhos do autor do atentado de Nice dizem que ele não era muçulmano, que usava drogas. Como ele largou o vício e se radicalizou de um dia para outro? Já em Orlando, foi dito que a pessoa sofria preconceito por ser muçulmana. A discriminação pode levar a crimes, claro. Como o ciúme pode também. Mas é um crime comum, não acho que seja um ato de terrorismo em nome do islamismo. E não há muito cuidado na divulgação dessas informações. Quando se vê um nome esquisito já se fala em extremismo religioso, o que nem sempre é verdade. Há uma supervalorização do Estado Islâmico.
Os muçulmanos querem viver num estado islâmico, nos moldes de país defendido pelo grupo terrorista?
Os muçulmanos querem um estado justo. Tanto é que muitos foram morar na Europa ou nos EUA porque lá os direitos eram garantidos. O lugar que me respeita é o lugar onde eu quero viver. Os muçulmanos querem ter justiça, como qualquer um. Do que adianta viver numa nação onde a religião é pregada, mas o governo é ditatorial? A aplicação da legislação islâmica é a aplicação da justiça, não a definição do horário que a população tem que rezar. Deus colocou que não pode haver imposição da religião.
No passado, o mundo muçulmano já foi muito mais avançado e tolerante do que o cristão. Por que os papeis parecem ter se invertido?
Depois da 1ª Guerra Mundial, os colonizadores deixaram as nações da região em estado de caos. A intolerância é causada por muitos elementos nesse pano de fundo. Os fatores econômicos, políticos e culturais são os verdadeiros responsáveis pela situação. Pobreza, desigualdade e analfabetismo são quem devemos culpar, e não a religião.
Como o senhor enxerga as charges críticas ao islamismo, como as feitas durante muito tempo pelo jornal satírico francês Charlie Hebdo?
Eu não sou contra críticas, elas são o direito de qualquer um. No entanto, acredito que a liberdade de expressão tenha limites. Esse limite é o do respeito. Tanto Jesus quanto o profeta Maomé disseram para amar o outro como se fosse a si mesmo. Para não ofender o outro como não gostaria de ser ofendido. Agora, se eu não gostei, ainda existe a Justiça. Eu devo me proteger dentro do estado de direito. Não posso agredir ninguém, quebrar a lei. E, mesmo quando a justiça não é feita institucionalmente, existem formas legais de luta. Por exemplo, depois das charges ofensivas de um jornal da Dinamarca, os muçulmanos pararam de comprar produtos daquele país. As mercadorias encalharam nos supermercados, o que é muito mais efetivo do que agir pelo ímpeto.