Bill Clinton, como sempre, foi imbatível na arte de seduzir. A plateia já sabe que não vai se entediar quando ele sobe num palco
Um dos melhores programas da TV desta semana, se não o melhor, foi a transmissão da convenção democrata que consagrou Hillary Clinton como primeira mulher candidata às eleições para presidente dos Estados Unidos. Dificilmente, se voltará a desfrutar de uma seleta de oradores tão excepcionais como a que se apresentou no palco do Fargo Center, na Filadélfia.
Cada um a seu modo, estilo, tom, verve e intenção, Bernie Sanders, Michelle Obama, Bill Clinton e Barack Obama usaram o microfone como arte, devolvendo à oratória política um brilho que há muito não se via. Basta se lembrar das platitudes emanadas por líderes mundiais como François Hollande ou dos horrores proferidos em Brasília para valorizar o talento de políticos que dominam o poder da palavra.
Ao menor deslize no apoio a Hillary, o senador Sanders poderia ter incendiado sua legião de seguidores progressistas. Embora derrotados, eles continuam a lhe dedicar fidelidade canina e estavam dispostos a rachar a convenção, por horror a tudo o que a Sra. Clinton representa na máquina do governo.
Mas Sanders trafegou com astúcia por uma narrativa ancorada no programa do partido, e não na figura da adversária. E deixou para o final, quando ovação e lágrimas dos fiéis já se misturavam, o endosso na primeira pessoa tão aguardado e necessário para a vencedora: “Hillary Clinton será uma presidente notável, e me orgulho de me colocar a seu lado esta noite”.
Cabia a cada orador ressaltar atributos específico da candidata, formando, no encerramento da convenção, um mosaico mais humanizado e confiável de Hillary — dois quesitos nos quais as pesquisas teimam em lhe ser desfavoráveis. Era preciso mudar sua imagem de mulher fria, calculista, interesseira e apegada ao poder.
Dos mais de 50 anônimos ou famosos que discursaram ao longo dos quatro dias, Michelle Obama foi certamente a surpresa maior. Embora não sendo política e jamais tendo feito um discurso dessa importância — nem mesmo quando seu marido foi eleito ou reeleito —, ela arrebatou a plateia. Foi tão incisiva, natural e pertinente no encadeamento de ideias sobre a vida americana que, ao final, o Fargo Center botou-se de pé, maravilhado com aquela primeira-dama negra que acabara de pôr no chinelo todas as antecessoras. Por sorte, Michelle não competia com Hillary — estava ali para apoiá-la.
Bill Clinton, como sempre, foi imbatível na arte de seduzir. A plateia já sabe que não vai se entediar quando ele sobe num palco, e a performance do ex-presidente e marido da candidata era a mais aguardada da convenção. Ele tinha uma miríade de narrativas possíveis. Escolheu a mais imprevisível e arriscada — a de romântico apaixonado — e dela não desviou.
“Numa primavera de 1971, eu conheci uma garota ...”, começou, manso. Fez breve pausa para testar o efeito desejado e foi em frente, inserindo as virtudes pessoais e o preparo político de Hillary na narrativa de um marido eternamente enamorado. Terreno minado, já que ele fora protagonista, entre outros pecadilhos transgressores, dos rumorosos encontros sexuais com a estagiária Monica Lewinsky, que quase lhe valeram um impeachment.
Mas Clinton fez o discurso dar saltos olímpicos na linha do tempo e driblou as armadilhas que ele mesmo se colocou. Quem o odeia por ser tão sedutor o terá odiado ainda mais naquela noite. E quem não perdoa a candidata a feminista Hillary por sempre ter perdoado o marido em público, talvez vote na ativista Jill Stein, a opção alternativa do Partido Verde.
Barack Obama conseguiu algo quase constrangedor: ao final do seu discurso magistral dirigido tanto à nação quanto ao cobiçado lugar na História, um coro de “mais quatro anos” emergiu da plateia. Ninguém, ali, queria imaginar um país sem Obama na Casa Branca — talvez nem com Hillary, certamente não com Donald Trump, o candidato republicano da cabeleira em forma de croissant.
Segundo dados da Real Clear Politics, o presidente chegava ao final do segundo mandato com 87% de aprovação por parte de quem o elegeu. É depositário de uma estima e confiança que precisa repassar para Hillary Clinton, nem que seja apenas um naco. O longo e portentoso discurso na convenção dedicou-se a isso. Obama sabe que seu legado político depende do resultado da eleição de 8 de novembro próximo — em caso de derrota, tanto a histórica reforma da saúde como o acordo com o Irã podem vir a ser anulados.
“Nenhum homem ou mulher, em nenhuma época, foram tão qualificados quanto Hillary para ocupar este cargo”, garantiu ele. “Nem eu nem você, Bill”, arrematou, apontando para Mr. Clinton na plateia.
A cota de discursos grandiosos havia terminado aí. Pena que no dia seguinte achou-se necessário dar a palavra à filha do casal, Chelsea. Dinastias políticas não costumam dar certo em países sérios.