"Da banca de peixes ao mercado de escravos", por José Nêumanne
O Estado de São Paulo
Em seu discurso no Fórum Econômico de Davos Dilma Rousseff tentou, ao que
tudo indica, erigir um marco de referência para sua campanha. Como o fora a
Carta aos Brasileiros, na qual o PT abandonou seu discurso avesso ao sistema
financeiro internacional para facilitar o acesso de Lula à rampa do Planalto
afastando a desconfiança dos investidores. E da Suíça Sua Excelência embarcou
para Cuba para agradecer a Raúl Castro os médicos exportados para o Brasil e
assim conquistar votos para candidatos oficiais combatendo as falhas da saúde
pública no interior.
Há 12 anos, inspirado pela visão pragmática do ex-prefeito de Ribeirão Preto
Antônio Palocci, que passou a coordenar o programa de governo do candidato
petista na campanha presidencial após a morte do ex-prefeito de Santo André
Celso Daniel, Lula deu uma guinada de 180 graus na retórica econômica do PT. Com
isso, acalmou o mercado inquieto e ganhou a eleição. Hábil, intuitivo e esperto,
o ex-dirigente sindical apoiou seu compromisso nos pilares da austeridade
monetária, do equilíbrio fiscal e da flutuação cambial ao nomear o banqueiro
tucano Henrique Meirelles para a presidência do Banco Central.
E não ficou nisso: solidamente ancorado em seu proverbial bom senso, o
antecessor, padrinho e fiador da atual presidente nunca estimulou nem permitiu
que nenhum espírito santo da sua orelha esquerda desautorizasse a política, na
prática, autônoma, da autoridade monetária nacional. Foi isso que amainou a
procela que parecia inevitável caso prevalecessem os impulsos
desenvolvimentistas e os flertes populistas com seus melodiosos, mas também
venenosos, cantos de sereia.
Nem mesmo a queda de Palocci no epicentro de um
furacão de escândalos de corrupção e sua substituição pelo inexpressivo, e às
vezes até caricato, Guido Mantega alteraram a rota singrada pela nau da
economia, que correria o risco de ficar à deriva. E assim o País continuou
prosperando e os eleitores garantiram seus dois mandatos e o triunfo de
Dilma.
Já a sucessora de padim Lula de Caetés é mandona, voluntariosa e pouco afeita
ao exercício da esperteza política. Embora Lula tenha sido mantido no alto posto
de eminência parda, a gestão de rotina da política econômica, sob a
insignificância de Mantega e a absoluta falta de brilho e de estilo próprio de
Alexandre Tombini, um burocrata incapaz de suceder a Meireles à altura,
independe da sensatez do profeta do ABC.
Ao contrário, limita-se tão somente aos
espasmos tirânicos de vontade da chefe geral, economista de formação acadêmica
basal, mas sempre disposta a deitar regra em função do diploma. A Carta foi
feita para a campanha e entrou na História. A peça de Dilma é mera fantasia de
palanque.
No reino encantado de dona Dilma, "a inflação permanece sob controle. Nos
últimos anos, perseguimos o centro da meta e trabalhamos para lograr esse
objetivo". Trata-se de um logro de fazer o Dr. Pangloss corar de pudor. Pois
pelo quarto ano consecutivo a inflação fechou 2013 acima do centro da meta,
embora abaixo do teto preestabelecido de 6,5%.
"Nosso sucesso estará associado à
parceria com os investidores do Brasil e de todo o mundo" - é o doce sonho da
chefe do governo. Com 13 procedimentos exigidos e 107,5 dias de prazo para abrir
uma empresa, o Brasil está no 116.º lugar entre 189 nações no ranking
"Facilidade para Fazer Negócios" do Banco Mundial. Quase um terço de executivos
do mundo ouvidos em levantamento da KPMG apontou a complexidade tributária como
maior obstáculo para investir no País.
Justiça seja feita, a presidente teve um momento de modéstia realista ao
registrar a necessidade de investir muito mais em infraestrutura, lembrando que
apoia as parcerias com o setor privado. No entanto, protecionismo, barreiras
governamentais, questões políticas e incertezas na regulação põem o Brasil em
71.º lugar entre 148 nações, segundo o Fórum.
Após haver afagado na banca de peixes de Davos bolsos dos quais deverão sair
doações para a campanha de sua reeleição, à qual é favorita, menos por
competência própria do que por incompetência da oposição, Dilma foi a Cuba. Lá
inaugurou a primeira etapa da construção do porto de Mariel, bancado por nós e
para o qual doou mais US$ 290 milhões de mão beijada. Então, se não pôde fugir
da obviedade de que é preciso investir mais para melhorar nossas condições
rodoviárias, portuárias, aeroportuárias e de outros setores necessários à
circulação de mercadorias, financiar um porto no qual nunca será embarcada uma
saca de soja nacional é uma contradição.
Na ocasião, atacou o embargo dos
Estados Unidos a Cuba, uma decisão anacrônica e nada inteligente dos gringos,
que só serve para reforçar a desculpa furada de que a situação deplorável da
economia da ilha caribenha se deve à intransigência ianque. Sua posição é
correta, mas óbvia e dispensável. Não parece lógico que os americanos corrijam
tal erro só para lhe agradar. E o Brasil até tem cacife para sustentar Cuba,
como antes o fizeram a União Soviética e a Venezuela. Mas para quê?
O aspecto mais surreal de sua visita ao canavial dos irmãos Castro, contudo,
foi ter levado na comitiva o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, candidato
petista ao governo paulista, e seu sucessor, Arthur Chioro, para os três
agradecerem em coro o envio de paramédicos cubanos para preencher vagas do Mais
Médicos nos grotões pátrios.
Ora, esculápios são o maior produto de exportação
da miserável Cuba e o Brasil paga o equivalente a R$ 10 mil por mês diretamente
aos tiranetes locais por profissional importado, ficando para cada um destes um
mísero troco. Trata-se de uma inversão na prática da mendicância: é a primeira
vez na História que quem dá a esmola agradece ao mendigo. Ao anunciar mais 2 mil
contratados em tais condições, a vendedora de peixe na Suíça comporta-se como
receptadora de escravos no Caribe 125 anos após a Abolição.